segunda-feira, 31 de julho de 2006

Fim


"Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras."

Samuel Beckett, in 'Textos para Nada'

quinta-feira, 27 de julho de 2006

"The Peace of Wild Things"



"When despair for the world grows in me
and I wake in the night at the least sound
in fear of what my life and my children's lives may be,
I go and lie down where the wood drake
rests in his beauty on the water, and the great heron feeds.

I come into the peace of wild things
who do not tax their lives with forethought
of grief. I come into the presence of still water.
And I feel above me the day-blind stars
waiting with their light. For a time
I rest in the grace of the world, and am free."

Wendell Berry

sexta-feira, 21 de julho de 2006

"They are just trying to survive...!"


Conheci o meu amigo Rany Saad vai fazer três anos em Setembro. Eu fazia parte da equipa portuguesa e ele da francesa, numa viagem (de luxo) que a Mercedes Benz promoveu na altura para fazer a apresentação do novo modelo Classe A.

Posso dizer que a nossa amizade foi praticamente instantânea, não se juntando água mas sim gin. Depois de uns dias divertidos nas melhores estradas da Europa e de muitas festas faustosas nas principais capitais europeias, cada um voltou às suas vidas com a certeza de que voltaríamos a estar juntos. Nem que fosse para assistirmos aos respectivos casamentos.

Não foi preciso passar tanto tempo e nesse mesmo ano o Rany veio a Lisboa por ocasião do meu aniversário. Aí, longe do brilho das festas Mercedes, tivemos oportunidade de conversar muito. O Rany era (é) um representante de duas culturas uma vez que é franco-libanês. Aproveitei para lhe fazer na altura todas as perguntas que esclarecessem de uma vez as minhas dúvidas sobre o Islão, sobre o ser muçulmano, sobre o "não ser ocidental". Ele, pacientemente foi respondendo.

A nossa amizade continuou e tem crescido à distância. Ele liga-me, eu ligo-lhe e torcemos pelas respectivas selecções no Mundial. Eu admirei o telefonema dele quando Portugal foi eliminado dizendo que tinha sido muito injusto para nós. E a partir desse dia vesti a camisola da selecção francesa. Até ao desfecho que se conhece.

De há uns dias para cá tenho pensado muito no Rany. Desde que começou a ofensiva militar no Líbano. Os pais dele (que não conheço mas que, segundo me disse o Rany, rezam por mim com frequência) vivem em Beirute. Assim como toda a família de Rany. Tentei ligar-lhe vezes sucessivas sem sucesso. Até hoje.

Falei com ele e percebi que a guerra não é lá longe. Com uma profundíssima tristeza na voz contou que à volta de casa dos pais só existe morte e destruição. As notícias que lhe chegam (ele vivem em Amsterdão) são escassas e o meu amigo treme sempre que o telefone toca por achar que vai receber a notícia que teme receber. Os pais do Rany estão em perigo. Assim como toda a família dele.

Não há muito a fazer, diz ele. Quando lhe perguntei como estava a família, a resposta foi lacónica: "They are just trying to survive". Esmagador.

O Rany está hoje um homem diferente. Para trás ficaram já os planos que fizemos para irmos juntos ao Líbano para eu conhecer a irmã que queria tanto apresentar-me. O Líbano que ele queria mostrar-me está a desaparecer rapidamente às mãos de Israel.

No dia de hoje, para o meu amigo Rany e para toda a família Saad, fica a minha oração. Em Portugal existe uma família que reza por uma família no Líbano. Uma oração a um Deus que é o mesmo. Pela paz que todos desejamos.

quarta-feira, 19 de julho de 2006

Lucidez


"Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassosego'

segunda-feira, 17 de julho de 2006

Prece


"Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu também! (...) Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos, nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."
Fernando Pessoa, in 'O Eu Profundo e Outros Eus'

sábado, 15 de julho de 2006

Calor


"Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes paralelas, em calão teimoso: --- «é de rachar»! «está de ananases»! «derrete os untos»! ... Atravessei ali uma dessas angústias atrozes, grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a vida e a literatura, vincam a alma e jamais esquecem. (...)."

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Afecto


"O erro dos sentimentais não está em crer que existem «ternos afectos», mas em se considerarem com direito a esses afectos, em nome da sua própria natureza. Enquanto apenas as naturezas duras e resolutas sabem criar à sua volta um círculo de ternas afeições. E é evidente - tragédia - que essas o gozam menos."
Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Estar só

"Considero saudável estar só na maior parte do tempo. Estar acompanhado, mesmo pelos melhores, cedo se torna enfadonho e dispersivo. Adoro estar só. Nunca encontrei um companheiro tão sociável como a solidão."
Henry David Thoreau, in 'Walden'

quinta-feira, 6 de julho de 2006

Tristeza


"Ao norte dessa triste cidade havia poderosas fábricas nas quais a tristeza (assim me disseram) era literalmente fabricada, e depois embalada e enviada para o mundo inteiro, que parecia sempre querer mais. Das chaminés das fábricas de tristeza saía aos borbotões uma fumaça negra, que pairava sobre a cidade como uma má notícia."
Salman Rushdie, in 'Haroun e o Mar de Histórias'

quarta-feira, 5 de julho de 2006

Lies


"Yes, each new day in suburbia brings with it a new set of lies. The worst are the ones we tell ourselves right before we fall asleep. We whisper them in the dark, telling ourselves we're happy, or that he's happy. That we can change, or that he will change his mind. We persuade ourselves that we can live with our sins, or that we can live without him. Yes, each night before we fall asleep we lie to ourselves in a desperate, desperate hope that come morning - it will all be true. "

Nada


"Nada a dizer, nada a acrescentar, a não ser a reincidente, renitente, constatação da solidão humana".

terça-feira, 4 de julho de 2006

Tell me something nice


Johnny: How many men have you forgotten?
Vienna: As many women as you've remembered.
Johnny: Don't go away.
Vienna: I haven't moved.
Johnny: Tell me something nice.
Vienna: Sure, what do you want to hear?
Johnny: Lie to me. Tell me all these years you've waited. Tell me.
Vienna: All those years I've waited.
Johnny: Tell me you'd died if I hadn't come back.
Vienna: I would have died if you hadn't come back.
Johnny: Tell me you still love me like I love you.
Vienna: I still love you like you love me.
Johnny: Thanks. Thanks a lot.

Nicholas Ray, Johnny Guitar, 1954,
com Joan Crawford e Sterling Hayden
(roubado
daqui. Obrigado João!)