sábado, 30 de setembro de 2006

Liberdade


"Tenta fazer esta experiência, construindo um palácio. Equipa-o com mármore, quadros, ouro, pássaros do paraíso, jardins suspensos, todo o tipo de coisas... e entra lá para dentro. Bem, pode ser que nunca mais desejasses sair daí. Talvez, de facto, nunca mais saisses de lá. Está lá tudo! "Estou muito bem aqui sozinho!". Mas, de repente - uma ninharia! O teu castelo é rodeado por muros, e é-te dito: 'Tudo isto é teu! Desfruta-o! Apenas não podes sair daqui!". Então, acredita-me, nesse mesmo instante quererás deixar esse teu paraíso e pular por cima do muro. Mais! Todo esse luxo, toda essa plenitude, aumentará o teu sofrimento. Sentir-te-ás insultado como resultado de todo esse luxo... Sim, apenas uma coisa te falta... um pouco de liberdade."
Fiodor Dostoievski, in "O Movimento de Liberação"

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Outono


"É outono, desprende-te de mim.
Solta-me os cabelos, potros indomáveis
Sem nenhuma melancolia,
Sem encontros marcados,
Sem cartas a responder.
Deixa-me o braço direito
O mais ardente dos meus braços,
O mais azul
O mais feito para voar.
Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálperas acessas.
Deixa-me só, vegetal e só,
Correndo como rio de folhas
Para a noite onde a mais bela aventura
Se escreve exactamente sem nenhuma letra."
Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

sábado, 23 de setembro de 2006

Fica


"Quantas dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre. Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo."

Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Depois beijo-te

Respiro-te.
Inspiras-me.
Com o olhar.
Com ternura.
Sem pressa.

Descubro-te.
Revelas-me.
Sinto-te:
Somos um.
Somos tudo.

Exorciso o Nada.
Respiro-te.
E depois?
Depois beijo-te.

(Pedro Rapoula)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Medo



"O pior de tudo é que eu sinto uma sombra por trás de mim e não sei por que nome lhe hei-de chamar. (...) Tenho medo de mim mesmo, tenho medo da minha alma, tenho medo de me encontrar sós a sós com a minha alma, que é nada, o fim e o princípio da vida e a razão do meu ser. Mesmo que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, perto de mim."


Raul Brandão, in 'Húmus'

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Morte


"O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma."

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

sábado, 16 de setembro de 2006

Maria Callas, 1923 - 1977


"Real friends are very special, but you have to be careful because sometimes you have a friend and you think he is made of rock, then suddenly you realise he's only made of sand. It's a terrible thing to go through life thinking that you have a rock on your side when you haven't."
Maria Callas, no dia em que passam 29 anos sobre a sua morte

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Chuva


"Não existe em mim nada de teu ", respondeste quando te perguntei porquê, confirmando que acabava assim um amor - o nosso -, ou a ilusão dele. Na verdade não existia em nós nada de nenhum dos dois porque o que sempre ambicionei foi que fossemos um só. "Mas... não há nada em mim que queiras?", perguntei quase em surdina... Das palavras que murmuraste a seguir só consegui distinguir o "adeus". E foi assim, sem gritos, sem lágrimas, sem olhares que te afastaste de mim no preciso momento em que senti na pele a primeira chuva de Setembro.
(Pedro Rapoula)

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Outro


"Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu. Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desconheço-me deles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Derrota


"Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. (...) Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo."
Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'

Ausência


"Para quem ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças ?"
Marcel Proust

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Caminho


"Hoje arrependo-me mil vezes de não termos ficado apenas amigos, como me propuseste na semana em que nos conhecemos, quando completamente embriagado de paixão, pedi que casasses comigo. Vamos ser só amigos, disseste, bons e grandes amigos. Mas, amigos? Como gostaria de ser teu amigo, mas não posso. Não posso porque quem ama pode jurar mil vezes por dia que só sente amizade, para que, na primeira oportunidade sinta ódio, desespero, solidão, ciúme e todos os sentimentos entrelaçados com o amor. (...)

Ainda sabes o caminho de regresso para mim?"
Pedro Rapoula, in 'Iniciação à Tristeza'

Música




Sento-me numa qualquer rua do Chiado. À volta as pessoas passam indiferentes à minha presença à minha solidão. Sentei-me porque um músico toca guitarra sem perceber que me atinge fundo, muito fundo. A música penetra-me e eu fico sem saber exactamente onde estou, se em Lisboa, se numa qualquer rua de uma qualquer cidade…
Agora parou. Fuma um charro com dois miúdos que também já o escutam há algum tempo. O silêncio de volta à rua devolve-me alguma lucidez. Volto a perceber que estou em Lisboa,que estou sozinho, que tu partiste e que a vida reorganizar-se-á na tua ausência.
Conversam animadamente enquanto partilham o tal charro. Tenho vontade de me juntar a eles, a fumar algo que me faça esquecer a minha dor. O vinho que bebi ao almoço começa a perder o seu efeito e eu não quero estar sóbrio. Há demasiado sol e é demasiado cedo para ficar consciente.
É na minha consciência que me torturas. É na minha consciência que a tua falta dói mais, a segurares-me, a compores-me, a insistires para que fosse sério, adulto, bem comportado.
Recomeçaram a tocar. Quero voar nesta música. Quero sentir que não estou de facto aqui, que posso estar em qualquer lugar. Quero fugir de ti, de mim, de tudo o que me prende ao nosso mundo. Quero estar só, ficar só, dormir só, mas morro de medo da minha solidão. Morro de medo da tua saudade… Quero viver sem ti e não sei. Quero respirar fundo e serenar
por te saber ausente, como se esta tua ausência não me fosse destruindo por dentro.
A música continua a percorrer-me. Sinto-me assustado. São ritmos quentes, que me atiram à cara as recordações de ti, que me transportam aos teus pés.
Ouço o rio a correr, lá longe, e de súbito, os minutos passam por mim com indiferença, como se o meu sofrimento pouco importasse.
Estou cansado.
Quero viver sem ti e não posso.
Quero possuir-te e odeio-te.
Quero tocar-te e não suporto ver-te.

(Pedro Rapoula)

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

De noite...



"Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos intimas, acesos,
Extáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor ... o amor antigo.

A minha dor está comigo ali,
Como outrora, eu estava ao pé de ti ...

Se eu fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!

Mas eu não sou a dor, a dor etérea ...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!

A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama ..."


Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Amanhã


"Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro."

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'