domingo, 30 de novembro de 2008

Estranha e longínqua


"A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida."

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 29 de novembro de 2008

Desespero


"A esperança seria a maior das forças humanas, se não existisse o desespero."
Vitor Hugo

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Prece


Maria Bethânia, in 'Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu'
(Dias de incerteza. Algumas melhoras para voltar a piorar...)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Never

"Oh let me weep, for ever weep!
My eyes no more shall welcome sleep.
I'll hide from the sight of day,
And sigh, and sigh my soul away.
He's gone, his loss deplore;
And I shall never see him more."

Henri Purcell por Pina Bausch numa cena de Pedro Almodovar
(para a minha avó)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Cor de chuva, negro pálido


"Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...
Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido. Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela.
Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'
(No dia em que, inesperadamente, parto para São Paulo. O estado de saúde da minha avó agravou-se. Viajo para me despedir. Provavelmente não voltarei a vê-la com vida. Há dias assim: tristes.)

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Aonde não te encontro e fico triste


"Talvez não saibas mas dormes nos meus dedos
aonde fazem ninho as andorinhas
e crescem frutos ruivos e há segredos
nas mais pequenas coisas que são minhas.

Talvez tu não conheças mas existe
um bosque de folhagem permanente
aonde não te encontro e fico triste
mas só de te buscar fico contente.

Oh meu amor, quem sabe se tu sabes
sequer se em ti existo ou sou demora,
ou sou como as palavras, essas aves
que cantam o teu nome a toda a hora.

Talvez não saibas mas digo que te amo
E construí no mar a nossa casa
Que é por ti que pergunto e por ti chamo
Se a noite estende em mim a sua asa.

Talvez não compreendas mas o vento
anda a espalhar em ti os meus recados,
e que há um pôr-do-sol no pensamento
quando os dias são azuis e perfumados.

Oh meu amor, quem sabe se tu sabes
sequer se em ti existo ou sou demora,
ou sou como as palavras, essas aves
que cantam o teu nome a toda a hora."


Joaquim Pessoa por Katia Guerreiro,
in '
Tudo ou Nada'
Para a Katia, que ontem no Teatro Tivoli, em Lisboa, apresentou o seu novo cd, FADO. Foi uma noite especial. Uma noite mágica. De reencontros e de reconciliações. De abraços em silêncio que disseram tudo. De lágrimas e de sorrisos que apagaram o que não interessa. De confirmações segredadas de que "o amor quando é sentido, não se pode disfarçar". Obrigado Katia. Por voltares a fazer-me sentir especial.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Esta tristeza


"Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!"

Antero de Quental

domingo, 23 de novembro de 2008

Sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim


"É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.
Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa.
Fogos-fátuos que a nossa podridão geral, são ao menos luz nas nossas trevas.
Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.
Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em que construía.
Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles... Esse sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável nimba vagamente de segredo.
Benditos os que não confiam a vida a ninguém."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

sábado, 22 de novembro de 2008

Num lugar que é só meu


"Queres saber quem sou? Eu sou o que te olha e espia para te recolher e depois guardar num lugar que é só meu. Para isso serve o papel. O resto não precisas saber. Nem convém. Só te ia distrair, podes crer. Eu sou o que mergulha as mãos na tua vida para sentir a minha a voltar."

Pedro Paixão, in 'Muito, Meu Amor'

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Entre o muito e entre o pouco que me afasta da infância



"Esta palavra Saudade
Sete letras de ternura
Sete letras de ansiedade
E outras tantas de aventura
Esta palavra saudade
A mais bela e a mais pura
Sete letras de verdade
E outras tantas, de loucura
Sete pedras, sete cardos
Sete facas e punhais
Sete beijos que são dados
Sete pecados mortais
Esta palavra saudade
Dói no corpo devagar
Quando a gente se levanta,
fica na cama a chorar
Esta palavra saudade
Sabe a sumo de limão
Tem um travo de amargura,
Que nasceu no coração
Ai palavra amarga e doce
estrangulada na garganta
Palavra com se fosse
o silêncio, que se canta
Meu cavalo imenso e louco
a galopar na distância
Entre o muito e entre o pouco,
que me afasta da infância
Esta palavra saudade
é a mais prenha de pranto,
como um filho que nascesse
Por termos sofrido tanto
Por termos sofrido tanto
É que a saudade está viva
São sete letras de encanto
Sete letras por enquanto,
Enquanto a gente for viva
Esta palavra saudade
sabe ao gosto das amoras
Cada vez que tu não vens,
cada vez que tu demoras
Ai palavra amarga e doce,
debruçada na idade
Palavra como se fossemos
resto de mocidade
Marcada por sete letras
a ferro e a fogo no tempo
Ai, palavra dos poetas
que a disparam contra o vento
Esta palavra saudade
dói no corpo devagar
Quando a gente se levanta
fica na cama a chorar
Por termos sofrido tanto
É que a saudade está viva
São sete letras de encanto
Sete letras por enquanto,
Enquanto a gente for viva"

J. C. Ary dos Santos, por Marisa Pinto em 'Um País chamado Simone'
Já aqui tinha publicado este poema e esta canção. Hoje dedico-o à minha Avó, Maria do Carmo, que vive no Brasil e que nestes últimos dias está a lutar pela vida. A minha Avó e eu temos 50 anos de diferença. E temos mais coisas diferentes. Mas temos tanto em comum. O facto de ela estar longe faz-me sentir ainda mais impotente. Queria poder estar ao lado dela, nestas noites longas, nos cuidados intensivos. A minha avó Maria do Carmo não é uma avó convencional. Mas é uma mulher admirável na sua vida infeliz. Com ela aprendi que a felicidade é finita e que tudo pode mudar de um momento para o outro. Com ela aprendi que não se pode confiar muito na vida e que nunca devemos estar tranquilos em relação ao futuro. Aprendi que o amor nem sempre tem que ser simpático. Mas tem que ser fiel. E duradouro. E leal. E constante. Sinto muito a falta da minha avó. E nesta noite, mais uma nos cuidados intensivos, em que luta para viver, quero abraça-la com muita saudade. E quero acreditar que ainda vou voltar a estar ao seu lado. Um beijo grande Avó. Não nos deixe.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Uma impaciência da alma consigo mesma


"E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; (...)"

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O fio interminável do esquecimento

"Levou tempo a habituar-se a andar sem ele ao lado, a querer contar sem ser ele a ouvir.
Voltava às ruas onde iam, aos lugares que frequentavam, sentava-se ali, imaginando que ele também se sentava e, por um momento, a angústia desaparecia e ela voltava a amá-lo como dantes. Sempre em vão, sempre calada, tecendo paciente sobre a mágoa o fio interminável do esquecimento.
Muitas vezes pensou que não queria voltar a vê-lo, outras tantas imaginou que era ele em cada uma das pessoas com quem se cruzava. Nas cinzas amargas daquela paixão, temia não o reconhecer como temia reencontrá-lo, não queria ver o seu olhar vazio da cumplicidade mágica que os unira, nem queria descobrir nele vestígios do amor mal resolvido.
Não voltou a pronunciar o nome dele e fechava-se num mutismo teimoso quando alguém ousava voltar ao assunto, ninguém percebia aquele desabar estrondoso de um namoro de tantos anos, daquele amor tido como inabalável e definitivo. A pouco e pouco, a firmeza daquele desgosto vivido em solidão ditou sobre o assunto um silêncio cúmplice e solidário, que a protegeu e deixou viver em paz o lento processo de apaziguamento.
Até que se esqueceu dele. Os seus traços esbateram-se, a sua voz deixou de ecoar na monótona repetição daquela despedida incisiva e fria e a recordação dele deixou de causar uma dor intensa sempre que a memória lhe passava o dedo de mansinho.
E ela abraçou com tranquilidade uma vida finalmente inteira."

Moura, in 'O.Insecto'

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Deserto


"São horas talvez de eu fazer o único esforço, de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. (...)"

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A dor que sei de cor mas não recito



"No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida.
No teu poema
Existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E aberta, uma varanda para o Mundo.

Existe a noite
O riso e a voz refeita à luz do dia
A festa da Senhora da Agonia
E o cansaço do corpo que adormece em cama fria.
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva, a luta de quem cai ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe o grito e o eco da metralha
A dor que sei de cor mas não recito
E os sonos inquietos de quem falha.
No teu poema
Existe um cantochão alentejano
A rua e o pregão de uma varina
E um barco assoprado a todo o pano.

Existe a noite
O canto em vozes juntas, vozes certas
Canção de uma só letra e um só destino a embarcar
O cais da nova nau das descobertas.
Existe um rio
A sina de quem nasce fraco, ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
Existe a esperança acesa atrás do muro
Existe tudo mais que ainda me escapa
E um verso em branco à espera... do futuro."

José Luís Tinoco por Paula Oliveira

domingo, 16 de novembro de 2008

À esperança sem vestígios


"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar alto (...), assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!..."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

sábado, 15 de novembro de 2008

Amor de quem não sabe dar



"Oferece o teu amor a quem te possa amar
A minha boca é fria, não tem alegria nem mesmo a cantar!
Na cruz da minha vida não queiras mais sofrer!
Não quero ser vencida, nem mulher perdida por tanto te querer!
Não queiras no peito esta flor sem perfume e sem cor, que não sabe enfeitar!
Não queiras a esmola do amor de quem não sabe dar!
Amantes, não quero, não quero!
Só este me pode agradar: é belo e castiço o meu fado amante sem par!"

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Como se passado fosse


"Viver por antecipação Pressentir situações, coisas, pessoas, sentimentos que ainda não aconteceram - que talvez mesmo nunca venham a ocorrer -, como se já se houvessem verificado. Imaginar o futuro como se passado fosse. Permanente desfasamento."

Marcello Duarte Mathias, in 'Diário da Índia'

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um vago agradecimento


"Há dias, sabes, em que gostava de ser como um gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar."

Pedro Paixão, in 'Assinar a Pele'

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Do desperdício do tempo e das almas


"Enfio-me num cinema, Shadowlands com Anthony Hopkins. (...) talvez por tudo girar em torno do desperdício do tempo e das almas, e o desperdício ser o sentimento dominante na minha vida; talvez por ter como tema central a morte, e eu estar mais próximo dela do que aparento; talvez por retratar uma Inglaterra idílica que sempre admirei; talvez sem razão nenhuma, o que é a melhor das razões - certo é que o filme me comoveu."

Marcello Duarte Mathias, in 'Diário da Índia'

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Do teu abandono desordenado


"Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar teus olhos que são doces...
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres exausto...
No entanto a tua presença é qualquer coisa, como a luz e a vida...
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto...
E em minha voz, a tua voz...
Não te quero ter, pois em meu ser tudo estaria terminado...
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados...
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada...
Que ficou em minha carne como uma nódoa do passado...
Eu deixarei... Tu irás e encostarás tua face em outra face...
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada...
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu...
Porque eu fui o grande íntimo da noite...
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa...
Porque os meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
E eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém, porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas,
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada."


Vinícius de Moraes

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O meu amor...


"O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que me deixa maluca, quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita

O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa

Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz"

Chico Buarque por Cristina Branco, in 'Sensus'

domingo, 9 de novembro de 2008

Não tenho paz, nem descanso


Justificar completamente"Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e à vida àquele cuja alma está desconsolada, que espera a morte sem que ela venha e a procura com mais ardor do que um tesouro, que saltaria de júbilo e se encheria de alegria se encontrasse o sepulcro? Ao homem que não sabe por onde ir e a quem Deus cerca de todos os lados?
Em lugar de pão tenho os meus suspiros, e os meus gemidos derramam-se como água. Todos os meus temores se realizam, e aquilo que me dá medo vem atingir-me. Não tenho paz, nem descanso, os meus tormentos impedem-me o repouso."

Livro de Job, 3, 20-26
da Bíblia Sagrada

sábado, 8 de novembro de 2008

Uma dor suposta


"Não sei o quê desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.

Como um barco absorto
Em se naufragar
À vista do porto
E num calmo mar,

Por meu ser me afundo,
Pra longe da vista
Durmo o incerto mundo."

Fernando Pessoa

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A mesma angústia funda, sem remédio


"Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!"

Florbela Espanca

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Os sítios, as pessoas, os sentimentos


"Sempre esta tendência que me tem custado caro de querer prolongar os sítios, as pessoas, os sentimentos, para lá do tempo normal em que estas coisas nascem e morrem em nós. Misto de pieguice e horror à morte."

Marcello Duarte Mathias, in 'Diário da Índia'

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

No espanto e na solidão


"Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
( Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e Amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego...

Ora agora,
?Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
?Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
Á qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

?Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e consola
Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre; cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do tal suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, vácuos,
A mim que tanto esperava
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegara!

E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

José Régio

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Entrelaçado no vento


"Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar
A dança verde das ondas
Soluça no meu olhar
Tentei esquecer as palavras
Nunca ditas entre nós
Mas pairam sobre o silencio
Nas margens da nossa voz
Tentei esquecer os teus olhos
Que não sabem ler nos meus
Mas neles nasce a alvorada
Que amanhece a terra e os céus
Tentei esquecer o teu nome
Arrancá-lo ao pensamento
Mas regressa a todo o instante
Entrelaçado no vento
Tentei ver a minha imagem
Mas foi a tua que vi
No meu espelho, porque trago
Os olhos rasos de ti
Este amor não é um rio
Tem abismos como o mar
E o manto negro das ondas
Cobre-me de negro o olhar
Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar"

Fado Perdição por Cristina Branco
(Tentei esquecer o teu nome
Arrancá-lo ao pensamento
Mas regressa a todo o instante
Entrelaçado no vento)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A aurora indecisa


"Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração"

António Ramos Rosa

domingo, 2 de novembro de 2008

Sem companhia nem sossego


"E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

sábado, 1 de novembro de 2008

Nem alegre nem triste


"Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu afastamento.
Não ser mais, não ter mais, não querer mais... A música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do camelo vazio sem destino..."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'