segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Um longo instante


"(...)
Um grande rio da vida correu entre nós e essa data tão distante. Mal se pode ver, se é que alguma coisa pode ver-se através de fosso tão largo. A mim parece-me ter acontecido, não direi ontem, mas hoje. O sofrimento é um longo instante. Não podemos dividi-lo em partes. Só podemos lembrar-nos dos estados de espírito e descrever o seu reaparecimento. Connosco o tempo não avança: gira. Parece contornar a dor. A paralisante imobilidade de uma vida em que todas as circusntâncias são reguladas por um padrão imutável, para que possamos comer, beber, passear, dormir e orar, ou pelo menos ajoelharmo-nos para rezar, e de acordo com as leis inflexíveis de uma fórmula férrea; esta imobilidade que torna cada horrível dia, no seu mais ínfimo pormenor, igual ao seu irmão, parece comunicar-se àquelas forças externas cuja essência é uma contínua mudança. Nada sabemos e nada podemos saber do tempo da sementeira ou da colheita, dos ceifeiros que se debruçam sobre o cereal ou dos vindimadores enfileirados entre os vinhedos, da erva do pomar tornada branca pelas flores caídas ou coberta pelos frutos. Para nós há apenas uma estação, a estação do Sofrimento. Parece que até o próprio Sol e a própria Lua nos foram tirados. Lá fora o dia pode estar azul e doirado, mas a luz que se escoa através do vidro, espessamente fosco, da pequena janela gradeada por detrás do qual nos sentamos é cinzenta e mesquinha. É sempre crepúsculo nas nossas celas, tal como é sempre meia-noite no nosso coração. E na esfera do pensamento, tanto como na esfera do tempo, não existe movimento. Aquilo que tu pessoalmente já esqueceste há muito tempo, ou podes esquecer facilmente, está a acontecer-me agora e acontecer-me-á amanhã. Lembra-te disto e assim serás capaz de compreender um pouco mais porque te escrevo desta maneira. (...)"

Oscar Wilde, in 'Carta a Bosie'

sábado, 29 de agosto de 2009

Gayatri Devi, a última Maharani de Jaipur


Gayatri Devi, Maharani of Jaipur, died on July 29th, aged 90.

Through India has not been ruled by princes for many decades, it is not hard to find princesses about the place. Bollywood stars, for example, in sheaths, shades and bling, whose every move and change of wardrobe is recorded in flashy magazines; fashionistas, aping Kareena’s T-shirt or Priyanka’s bobbed hair, who spend their afternoons eating ice cream in Delhi’s malls; and the VIPs, or VVIPs, who force their cars through the traffic with horns blaring, and who refuse the indignity of being searched at airports.

In contrast to these one may sometimes find, at high tea at the Delhi Polo Club or in the lounge of the Taj hotel, the genuine article. Gayatri Devi was among the most famous of these. Her beauty was astonishing, praised by Clark Gable, Cecil Beaton and Vogue, but liner or lipstick had nothing to do with it. She had a maharani’s natural poise and restraint. From her grandmother, she had learned that emeralds looked better with pink saris rather than green. From her mother, she knew not to wear diamond-drop earrings at cocktail parties. A simple strand of pearls, a sari in pastel chiffon and dainty silk slippers were all that was required. The fact that she looked equally good in slacks, posing by one of the 27 tigers she personally eliminated, or perched, smoking, on an elephant, merely underlined the point. She was a princess, and a princess could make Jackie Kennedy appear almost a frump.

Money was never lacking in her life. As the daughter of Prince Narayan of Cooch Behar, in West Bengal, she grew up with dozens of staff and governesses recommended by Queen Mary. Thirty horses, six butlers and four lorryloads of luggage accompanied the family to their holiday cottage. “Broomstick”, as the family called her—other members were “Bubbles” and “Diggers”—was polished up in Lausanne and Knightsbridge, where she rather redundantly took a secretarial course. Her future husband, the Maharajah of Jaipur (“Jai” to her) first appeared at Woodlands, the family home in Kolkata, resplendent in an open-top green Rolls Royce. When she married him in 1940 her presents included a Bentley, a hill-station house and a trousseau that was left for collection at the Ritz in Paris. Their life came to revolve round the polo seasons in which he starred: winter and spring in India, summer in Windsor or Surrey, the thundering chukkas interspersed with plentiful champagne.

Yet there was an oddity about Gayatri Devi. She was a tomboy who liked to keep company with the servants, worrying about their wages, and with the mahouts, learning their songs and stories of elephants. After meeting Jai at the age of 12 she began to wish she could be his groom, fortuitously brushing his beautiful hand as she handed him his polo stick. Distinctions between raja and praja, prince and people, did not bother her, and she could be as cavalier about the yawning social divide between women and men. As Jai’s third wife, she should have been in purdah in a “city” of 400 other lounging and sewing women, watching the world through filigree screens. Instead she kept him company in the palace, riding and big-game hunting, or flying to Delhi in her private plane to shop. And she set up a girls’ school in Jaipur through which, she hoped, other daughters of the nobility might eventually learn to stick up for themselves.

The perfumed prison

Independence in 1947 brought a democratised India and the replacement of the 562 princely states with centralised, socialist government, but her attachment to “my people” did not change. Command, like style, came naturally to her. In both Cooch Behar and Jaipur, arriving becomingly wind-blown at the wheel of her Buick or her Ferrari, she would be greeted with flowers and incense and with deep prostrations in the dust. The villagers trusted her to help them, so she tried. That intimate understanding between ruler and ruled, she often said later, was sadly missing from modern India. It went with the crumbling of modern Jaipur which, under the maharajahs, had been a glorious desert city of wide avenues, palaces, peacocks and pink walls. She always saw it that way.

In 1960, having asked Jai’s permission and summoned the party secretary to the palace, she joined the liberal Swatantra party to oppose Jawaharlal Nehru’s left-wing Congress. She did not like socialism or five-year plans. A run for parliament two years later for the Rajasthan constituency gave her the world’s largest landslide, 192,909 votes. But this was hardly surprising. The people were voting for “Ma”, their princess, an exquisite figure in pearls and pale chiffon enthroned on a palanquin of carpets, who nevertheless called them her sisters and her brothers.

She continued to field their problems to the end of her life, though her political career as such did not long outlast a spell in Delhi’s Tihar prison in 1975, under Indira Gandhi. The charge was currency offences, based on a few Swiss francs found in her bungalow among the jade, rose-quartz, Lalique and Rosenthal. The prime minister seemed mostly to object to her aristocracy. Gayatri Devi softened the blow by pouring French perfume into the open sewer in her cell. As it ran through the building, Asia’s largest prison and one of its worst, other prisoners gathered to inhale the wafting vapours, the true scent of royalty.

in 'The Economist'

Gayatri Devi, a última Maharani de Jaipur, e as suas memórias, 'Une princesse se souvient' foram a causa primeira do meu encantamento pela Índia. Uma Índia que, como pude comprovar, já não existe. A sua morte, aos 90 anos, encerra um ciclo na história desse grande país.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Pelo nosso amor desfeito (Letra para um fado tradicional)


Estes silêncios que calo
Bem fundo no coração
São lágrimas que não te entrego
São vozes da solidão

É a tristeza que guardo
Nos olhos e dentro do peito
É esta alma marcada
Pelo nosso amor desfeito

Vivo sem ti (e não vivo),
Vivo sem ti (por viver)
Uma existência vazia
Que é este amar sem te ter.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Das pessoas em particular


"(...)
Era um homem já de idade e com uma inteligência incontestável. Falava do mesmo modo sincero, embora com ironia, mas uma triste ironia. Gosto da humanidade, dizia ele, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade em geral, menos gosto das pessoas em particular, isto é, das pessoas em separado, das pessoas concretas. Nos meus sonhos, dizia ele, chego muitas vezes às ideias apaixonadas de servir a humanidade , se calhar, seria mesmo capaz de subir ao calvário pelas pessoas se de repente isso fosse necessário; ao mesmo tempo, sou incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto durante dois dias, digo-o por experiência. Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor-próprio e me constrange a liberdade. Sou capaz de ganhar ódio, de um dia para o outro, à melhor das pessoas: odeio este porque come devagar ao almoço, odeio aquele porque está constipado e não pára de assoar o nariz. Basta as pessoas tocarem-me ao de leve, dizia-me ele, para me tornar inimigo delas. Entretanto, continuava, sempre me sucedeu que, quanto mais detestei as pessoas em particular, tanto mais glorioso era o meu amor pela humanidade em geral. (...)"

Fiódor Dostoiévski, in 'Os irmãos Karamázov'

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

No teu sorriso


'Tu partiste nos quatro versos
que antecederam estas linhas;
ou partiu o teu sorriso, porque tu
sempre moraste no teu sorriso,
chuva verde nas folhas, o teu sorriso,
bater de asas no pulso, o teu sorriso,
e o sabor, esse ardor da luz
sobre os lábios, quando os lábios são
rumor de sol nas ruas, o teu sorriso.'


Eugénio de Andrade
(roubado daqui)

sábado, 8 de agosto de 2009

A partida, o vazio, a ausência


"Agora, há um antes e um depois daquele dia. Mas, quando menos espera ou prevê, o tempo deixa de ser linear e torna-se circular. De repente, tudo regressa àquele momento, àquele corpo, àquele rosto parado. Talvez por isso, poucos dias após aquele dia, ele foi reler uma passagem de "Em Busca do Tempo Perdido": aquela em que, contando a morte da avó, Marcel narra verdadeiramente a morte da mãe de Proust. Diz como o seu rosto rejuvenesceu na hora em que a vida se ausentou dele. Dessas palavras tão frias como a morte que descrevem, ele fixa uma frase, a partir da qual começa a mudar a rota da sua dor: "A vida, ao retirar-se, acabava de levar as desilusões da vida. Parecia haver um sorriso poisado nos lábios da minha avó. Naquele leito fúnebre, a morte, como o escultor da Idade Média, deitara-a com a aparência de uma menina." Depois de assim ter lido, regressa ao momento em que chegou ao hospital e lhe deram a notícia. E volta a ver a mãe inclinada para o lado direito (parecia que dormia) e o seu rosto apagado pela morte. Mas não estava mais jovem do que fora, porque antes não envelhecera muito. Nem as rugas lhe desapareceram, porque nunca as tivera. Talvez por isso, ele pensara sempre que a mãe era eterna.

Agora, todos os dias olha as fotografias. Tenta adivinhar as situações em que foram tiradas, procura despertar o instante ali fixado. (...) Finalmente, vê a sua última imagem, sentada no sofá onde costumava estar. Depois de a ver, dirige-se, sem pensar nisso, ao sofá e senta-se no braço, como quando lhe fazia festas. Agora, em vez dela, há ali a partida, o vazio, a ausência - e nos seus olhos surge um brilho triste e húmido. (...)"

José Manuel dos Santos, in 'Impressão Digital'
para a minha avó que morreu há 8 meses