terça-feira, 26 de maio de 2009

O Comboio ou A Varanda que via passar mulheres



Era manhã cedo em Lisboa e o comboio apitava na estação vomitando nas plataformas mulheres apressadas e homens distraídos. Mas aquele não era um comboio qualquer porque era um comboio especial. De todos os comboios que conheço era provavelmente o mais especial que havia. Vinha dos mesmos sítios que os outros e ia para os mesmos sítios que os outros. Mas era especial no meio de todos porque nenhum ambicionava nada enquanto aquele ambicionava tudo. E o seu maior sonho era ser um barco e navegar pelos mares.
Era manhã cedo em Lisboa e o comboio apitava na estação vomitando nas plataformas mulheres apressadas e homens distraídos. E no alto daquele prédio cor de tempos passados, uma varanda tímida espreitava as mulheres que passavam, apressadas, e sentia o íntimo desejo de ter nascido como elas, mutantes, velozes, portáteis!
E sempre que era manhã cedo em Lisboa e o comboio apitava na estação, varanda e comboio trocavam sonhos e desejos vivendo entre os dois a partilha de uma fantasia que os transformava respectivamente em barco e mulher à deriva pelo mar. E riam-se da pressa das mulheres e da distracção dos homens que não percebiam nada e que não aproveitavam os barcos e os mares para fugir ou para sonhar!
Desta rotina nasceu obviamente um amor enorme da varanda pelo comboio. E quando ele por alguma razão não vinha, a triste varanda perdia-se em divagações românticas e em ciúmes enlouquecidos, imaginando que o comboio era finalmente um barco e que alguma daquelas mulheres que ele transportava tinha descoberto o caminho directo para o seu coração... Aquele sofrimento era feroz e durava até à próxima manhã em que, cedo, o apito ecoava pela estação. Só os pássaros que por ali pousavam testemunhavam estes desvarios e por toda a cidade já se comentava a loucura da varanda que não percebia que era apenas uma varanda!
Os tempos foram passando, o comboio foi fazer outras paragens e deu por si a fazer a linha do Estoril, ao lado do rio, e acabou mesmo por se esquecer que era comboio para se convencer que era um grande e forte barco, porque só via água!
Quanto à varanda, essa foi enlouquecendo sozinha à medida que percebeu que nunca seria mulher. A última vez que soube dela estava apaixonada por uma gaivota que ainda por cima só abusou da sua boa vontade. Hoje quando lá passo ainda olho para cima mas é raro a varanda reagir. Perdeu o juízo e agora vai deixando cair pedacinhos de si quando passa alguma mulher. Queria confortá-la mas não sei. O meu forte nunca foi varandas.
(para a Fernanda, a quem escrevi isto há algum tempo atrás.)

sábado, 23 de maio de 2009

De uma vida menos vasta


"Quando se tiver diminuído o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará a haver sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas."

Marguerite Yourcenar
(obrigado Filipe, pela sugestão)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Até Sempre, meu Amigo.

Foto by Luís Filipe Catarino

Tive o privilégio de conhecer pessoalmente João Bénard da Costa porque durante os útimos três anos ele foi Presidente e eu vogal das Comissão das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Sempre que estivemos juntos, ele ensinou-me muito e eu aprendi muito. Com uma disponibilidade invulgar num homem da sua dimensão, Bénard da Costa nunca se impacientou com as minhas perguntas ou com a minha falta de respostas. Pelo contrário, guiou-me, dirigiu-me, orientou-me na procura incessante de conhecimento que era sua e que rapidamente me contagiou. E a preparação das Comemorações era sempre entusiasmante pelas coisas que ano após ano eu ia descobrindo por seu intermédio.
Portugal continua, as Comemorações também. Só Bénard da Costa está ausente. Este ano, em Santarém, vou sentir falta das nossas conversas. Até sempre, meu Amigo.

Poema em ziguezague


Afecto,
tormenta
taciturna.

Casa
deserta,
vazia.

Tenho para mim que te esqueço em menos de um dia.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Paisagem


Trago nos olhos cansaços de uma paz que não chega
E há na tua voz um sobressalto que esconde tréguas tardias
Perdemos o futuro em perdões adiados
Nada mexe já na paisagem de fim de tarde.

Cá dentro o silêncio, o abandono, a esperança.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Da espera


"em fuga.
quero o teu corpo todo em mim
tantas vezes quanto o corpo nos permitir
e adormecer depois com o cansaço quente como almofada
de seda e prazer

único.
depois da alucinação a frustração da espera
e este o último poema que escrevo para ti?
ou o primeiro momento na longa queda deste outono oxigenado?

toma conta de mim este som sangue sinal"


M. Tiago Paixão

terça-feira, 19 de maio de 2009

Se bastasse

"Ai meu amor se bastasse
Saberes que eu te amo tanto
E cada vez que eu cantasse
Ai meu amor se bastasse
Saberes que é por ti que eu canto

Ai meu amor se bastasse
O que a cantar eu consigo
E mesmo que eu não cantasse
Ai meu amor se bastasse
O que a falar eu não digo

Ai meu amor se bastasse
Eu saber que não te basta
E na vida que eu gastasse
A Cantar eu reparasse
Que a nossa vida está gasta

Se o que eu tenho p'ra te dar
Quando eu canto te chegasse
Se isso pudesse bastar
Se me bastasse cantar
Ai meu amor se bastasse."
Manuela de Freitas por Aldina Duarte

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Um rio que não acaba


(...)
III
imaginar quer dizer
isso mesmo e é real
não digo chuva sem me molhar
e o teu nome sem que me beijes
enquanto te espero aqui
vês a chuva?

Continuo sentado enquanto o céu se move
a cor muda
comigo em espera

tenho frio
(já te disse antes como tenho frio)
vejo mais longe do que todas as pessoas que aqui estão
(falei-te do medo e da vertigem)

mudo de margem e (h)à margem enquanto escrevo
abandono os tectos as casas a um passado olhar
esquecido da gramática morta em cima da mesa
voltarei mais tarde ao som da tua voz

(da tua boca saem nuvens e um rio que não acaba)

M. Tiago Paixão

terça-feira, 12 de maio de 2009

Quase nada


"Hoje, também os carros dançam. As casas movem-se levemente. E eu - que mudei de casa e de roupa, de cidade e de cama, de palavras... Eu, que mudei de música e de carro, de saudade, de quarto... Eu - que mudei de computador e de rua, de eternidade e de paisagem, de abraço e de clima... Eu - que mudei de língua e de lágrimas, de deus e de caderno, de crenças e de céu... Eu - que mudei de lume, que mudei de medos... Eu - que mudei de planos, de lençóis, de secretária... Eu - que mudei de óculos e de rumo, de amigos, de champô, de rituais e de supermercado... Eu - que mudei de tudo que em quase nada mudou, mudei de dentro de mim para dentro de ti, meu amor."

Filipa Leal

sábado, 9 de maio de 2009

Caminhos


“Ainda que os teus passos pareçam inúteis, vai abrindo caminhos, como a água que desce cantando da montanha. Outros te seguirão...”

Antoine de Saint-Exupery

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Um lugar vazio


"na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu, depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco."

José Luis Peixoto
(para a minha avó que morreu há 5 meses)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Só eu na escuridão


"Era a noite que caía
E na sombra recolhia
O voo das andorinhas.
Era a voz que se calava,
Era a dor de ver que estava
Sem as tuas mãos nas minhas.
Eram passos que escutei,
Que eram teus ainda pensei,
Iludiu-me o coração.
Foram pela rua escura
Longe da minha amargura
E acompanhei-os em vão.
Fiquei perto da janela,
Pus-me a abri-la com cautela,
Fiz disfarce da cortina.
Vi então na luz incerta
Que a rua estava deserta
E deserta estava a esquina.
Era só eu na escuridão,
Era no peito um rasgão,
Era já no céu a lua,
Que me importa?, à minha porta
A sombra que se recorta
Bem pode ainda ser a tua."

Vasco Graça Moura

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Palavras caladas


"Quis um poema que te dissesse,
Quis tempo novo para te dizer
Uma palavra que enlouquece,
Que oferece vida e faz morrer.

Amor, amor, teu nome antigo,
Teu nome breve e tão eterno,
Primavera agora,Verão amigo,
Amor, amor, sol de Inverno.

Procurei tantas madrugadas,
Encontrei manhãs para respirar,
Encontrei palavras caladas,
Encontrei amor para te cantar."

terça-feira, 5 de maio de 2009

De tanto chorar por ti



"Assim que o barco partir
Rezando a Deus vou pedir
Que te dê felicidade
Que te dê boa viagem
E a mim me dê coragem
Para suportar a saudade

Se não for à despedida
A razão ó minha querida
é fácil de adivinhar
É que a saudade é medonha
E depois tenho vergonha
Que alguém me veja chorar

Se acaso um dia voltares,
Feliz, e não me encontrares,
Ouvires dizer que morri
Foi de saudades, não nego,
Ou então devo estar cego
De tanto chorar por ti"

Carlos Ramos
(estes dias vão ser longos...)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

De um mar da manhã


"Que eu me detenha aqui. E que também eu veja um pouco a natureza.
De um mar da manhã e de um céu sem nuvens
roxas cores brilhantes e margem amarela; tudo
belo e grande iluminado.

Que eu me detenha aqui. E que me engane para ver isto
(vi de verdade isto por um instante quando primeiro me detive);
e não aqui também os meus devaneios,
as minhas recordações, os modelos da volúpia."

Konstandinos Kavafis, in 'Poemas e Prosas'

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Em relação à vida e ao acontecer


"Lembro-me perfeitamente de uma pessoa de família, que trazia muito mais marcada do que eu essa distância em relação à vida e ao acontecer. E, numa circunstância que para mim nesse momento era importante, ela encontrou-me a chorar numa varanda, no interior da casa de campo, ao cair da noite. E ela passou e disse-me: "Menina, choras". Eu não disse nada e ela disse "Deixa lá, que na vida ninguém é feliz". Ela não tratou sequer de me consolar, nem de saber as razões. Não tinha importância; o facto é que aquele era um momento amargo para mim, e ela então consolou-me dessa maneira."
Agustina Bessa Luís
(em entrevista)