quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tão curto o amor, tão longo o esquecimento

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo. Isso é tudo.
Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo."


Pablo Neruda
(no dia em que parto para o seu país)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Onde o olhar começa a doer

"Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.
Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar."
Eugénio de Andrade, in 'Matéria Solar'

domingo, 28 de outubro de 2007

Eu venho do nada porque arrasei o que não quis

"Encosta-te a mim
Encosta-te a mim, nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim, talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim, dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou, deixa-me chegar.
Chegado da guerra, fiz tudo p´ra sobreviver
em nome da terra, no fundo p´ra te merecer
recebe-me bem, não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói, não quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim.
Encosta-te a mim, desatinamos tantas vezes
vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for.
Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada onde só quero ser feliz
enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim. "

Jorge Palma, in 'Voo Nocturno'

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Terror de não haver ninguém

"Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens
Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos."
José Tolentino de Mendonça, in 'A noite abre os meus olhos'

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Frio


Dei por mim sentado no chão do quarto a contar as horas para que a noite caísse. Sabia que a noite nos traria a cumplicidade dos corpos... Era a cama o nosso território. Quando se passou aquele par de horas sem que aparecesses percebi que algo de trágico teria acontecido. Por isso quando o telefone tocou e me disseram que tinhas tido um desastre e estavas em coma, a notícia não causou em mim qualquer surpresa. Senti apenas o arrepio daqueles momentos em que nos apercebemos de que a vida não vai voltar a ser igual.

Cheguei ao hospital passado pouco tempo. A tua mãe já estava sentada na sala de espera, hirta, com uma expressão muito dura no rosto. Deixei-me ficar ao seu lado, em silêncio, sem perceber se devia pegar-lhe na mão e desejando ardentemente que ela me confortasse com umas festas. E ficámos ali os dois, numa tensão surda, as duas pessoas que mais te amavam à espera da confirmação da tua morte ou da tua salvação.

Quando o médico apareceu levantámo-nos os dois em menos de nada. A notícia de que a operação tinha corrido bem não foi sequer festejada porque a informação de que continuavas em coma deixou-nos completamente transidos de terror. Estavas agora num território só teu e apenas tu poderias encontrar o caminho de volta.

Nunca como naqueles dez dias que durou o teu coma eu senti tanto frio. Por mais que me agasalhasse estava constantemente gelado. Era o medo de te perder para sempre que me gelava a alma, o corpo, o coração. Era a certeza de que te amava que me deixava esmagado de desespero. E foram as recordações dos tempos felizes que me fizeram ultrapassar a tua perda. O fim é sempre mais trágico quando não o esperamos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A queda

Em resposta a este post da Laura



O Silêncio. O tal silêncio que deixava todos envergonhados quando se olhavam nos olhos. Sobreviver à tragédia era, no fim de contas, viver a humilhação da derrota. Ao fim de tantos e tantos dias os pesados portões da cidade continuavam abertos. Não havia nada para defender que justificasse a sua urgente reconstrução.
Começaram por limpar as ruas, enterrando os mortos em fundas covas nos limites das grandes muralhas, no sítio mais longe da vista de todos. Em vez de cruzes plantaram uma árvore no lugar de cada morto: pinheiros bravos para os homens e árvores de fruto para as mulheres. Passado este tempo recomeçaram a construção das grandes portas da cidade. Quando as fecharam respiraram de alívio por se saberem separados do resto do mundo. Escondiam a vergonha e a desilusão dos olhares indiscretos de todos os que agora se regozijavam com a queda daquela cidade antes impenetrável. Só depois, pedra a pedra, levantaram as paredes das casas, uma a uma. Sem luxos, sem sedas, sem ouro. Apenas a crueza da pedra e o aveludado da madeira. O regresso às origens. A austeridade humilde dos que precisam da simplicidade para se fortalecerem. O luto durou um tempo indeterminado. Só quando se ouviu o choro da primeira criança nascida depois do ataque, a cidade voltou a respirar de alívio. E nesse dia as árvores no cemitério floriram pela primeira vez. E nas janelas das austeras casas de pedra começaram a aparecer pequenos vasos com rosas de todas as cores. A tristeza dera lugar à esperança. A vida recomeçara. E todo aquele sofrimento deu lugar à certeza de que não voltariam a ser humilhados daquela forma.

sábado, 20 de outubro de 2007

Olhar-te última vez com tristes olhos



Acordei antes de ti, bela Lisboa
Que dormes ainda nos braços do teu Tejo
Amante fiel que a solidão perdoa
Rio alegre que me traz tudo o que vejo.

O Tejo não é rio, já é mar.
É mar que também ama e não esquece
A dor de partir além de ti,
A dor de ficar num espaço breve.

Lisboa que ainda dormes sem saber
Que esta manhã já não acordas a meu lado,
Que este sol que nos invade também separa,
Que este mar que hoje me leva não é salgado.

Lisboa adormecida, minha amante
Que lânguida te abandonas em meus braços
Deixa-me olhar-te última vez com tristes olhos
Que pelo mundo levarão o teu retrato.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Intervalo

"Eu só quero o silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma,
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam."


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Em verdade e transparência

"Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer."


Sophia de Mello Breyner,
in “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”

Amar-te

"1
Uma onda
é amar-te e medo
ciúme deste mar
tan-tan do meu naufrágio
numa canoa de pétala
de acácia
2
Uma jangada
que me tragas feita
de troncos de palmeira
ou de um barco de negreiros
afundado
e dentro de uma concha
uma notícia
3
Amar-te é esta distância
e junto ao mar
senti-lo viajado
azul e com estrondo
4
Amar-te é uma fogueira
sobre a onda
sítio de uma lavra
de milho ou mandioca
na areia que me foge
sob a espuma
5
Amar-te é isto
com o teu perdão
não agarrar a onda
e mastigar-lhe o sal
que apenas sei
ter já beijado
a tua praia
6
Uma onda
que penso.
Outra em que reparo.
A mesma em que pensei
e que retorna ao mar.
7
Porque ficar a onda
— o impossível
(dizem que não havia
mar
remos de sol
nem barcos afundados)."

Manuel Rui, in 'A Onda'

domingo, 14 de outubro de 2007

Na placidez dos lábios

"(...) Mas insensivelmente os lábios foram-se separando um pouco. Um dente. Subtil iluminado de pacificação serenidade alegria de ser - se te demorasses um pouco. E seres aí a vida rodeada de verdade por todos os lados. Um dente visível. Mas os lábios separaram-se um mais e são agora um sorriso claro solar. E instintivamente deixei que se demorasse aí até eu poder reconhecer-lhe o esplendor. É um riso, não vou cometer a imprudência de o perder. Está na linha do céu e do mar, não vou. A juventude sem uma força excessiva de o ser. A confiança - não vou. O futuro dos séculos a quererem vir. A segurança contra o medo a vileza a degradação. A morte. Nem na realidade há nele futuro algum. Porque todos os séculos do futuro e do passado se conglomeram ali no instantâneo presente. O riso. Sem olhos nem face. Nem cabelos. Porque toda a sua ausência está lá. São olhos iluminados de uma festa terrível, cabelos de ar. Fixar-te para sempre, riso da minha pacificação. Mas pouco a pouco houve primeiro um estremecimento aos cantos da boca. Pouco a pouco um encrespado na placidez dos lábios repousados um no outro e depois a boca alargada, vejo-a alargar-se por dentro do meu pavor. E os dentes já visíveis onde o ódio começa, a boca toda aberta, aberta. Rasgada, escancarada até ao limite do seu possível. Os dentes, a língua. E de súbito, entalado na garganta, de súbito um grito horríssono, ouço-o. Tapo os ouvidos, ouço-o. Horror, ódio, desespero. Vem das cavernas do Mundo. Das trevas de todas as noites. Rebenta-me os ouvidos, o crânio. Urro de massacre, a terra treme. Olho a boca selvagem, os dentes carnívoros. A língua. Aguardo que o urro se acabe. E com efeito, subitamente cessou. Mas a imagem imobilizou-se no grito enorme que já não ouve. É o horror inaudível, mas presente assim na imagem fixa. Sem o estridor que a estremecesse. Mais plausível no imaginário de o ouvir.(...)"

Vergílio Ferreira, in 'Na tua face'

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Mais sem fim


"Hoje é o primeiro dia do mês e de ti
dia iluminado pela exactidão solar do teu nascer
dia sem noite e sem confim

dia que te deu o rigor e a regra
o fiel certo da balança humana do olhar
signo da justiça da luz e do ar

dia pleno de ti
dia em que não pesei a solidão
porque nos teus olhos reconheci
ainda sem o ver
o amor mais fundo e mais sem fim"


José Manuel dos Santos , in 'O livro dos registos'

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Um dia de ilusão

"Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
Ou é um grito
Que nasce em qualquer lugar
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou
Às vezes sou
O tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que eu sou"


Maria Guinot

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Mas não quando se ama


"Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferença,
mas não quando se ama,
não quando se aperta contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te."


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Tempo sem recordações

Sento-me e peço un gin tónico. A Pamela atende-me com o sorriso de sempre, aberto, carinhoso, fiel. Percebo no seu olhar a surpresa de me ver pedir uma bebida tão forte quando ainda não é meio-dia. Mas não diz nada. Baixa os olhos, como eu os baixo por sentir que a minha angústia está espelhada no meu rosto.

À minha volta há demasiada gente, demasiada luz. Há barulho de crianças a correr pela praça e há conversas cruzadas. Todos parecem ter algo a dizer. Eu não converso com ninguém. Não tenho com quem conversar. Ninguém sabe quem sou, de onde venho e porque estou ali sentado, a beber um gin tónico quando ainda não é meio-dia. Nunca ouviram falar de ti nem da demência que a tua ausência quase me causou. Ninguém sabe que desde que partiste eu não vivi, eu sobrevivi apenas. Ninguém faz ideia de como me perturbam e me irritam as gentes, a luz em demasia, as crianças a correr pela praça, as conversas cruzadas. Ninguém imagina como queria ter para onde ir, como queria ir para qualquer lugar, deixar para trás as recordações de um tempo sem recordações e aceitar que tudo vai ser diferente daqui para a frente...

Na rádio toca "Los Panchos". Associo-te a esta música. É quente... e apesar de estarmos em Agosto e de os termómetros marcarem mais de 30 graus, morro de frio ao pensar na tua ausência...

Lento desejo do teu corpo

"(...) E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo."
Herberto Helder, in 'O Amor em visita'

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dia Mundial da Música


"Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar
Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando há traição, ciúme e morte
E um coração a bater forte
Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
No dia de procissão
Da Senhora da Saúde
Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama
Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:
Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar
Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca, mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, folião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele
E então
E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Ah! Corre em vertigem num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua
Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar
E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir
Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado."