terça-feira, 30 de junho de 2009

Contra a distância e o esquecimento


Ela disse: "Eis aquela que parou em frente/ Das altas noites puras e suspensas.// Eis aquela que soube na paisagem/ Adivinhar a unidade prometida:/ Coração atento ao rosto das imagens,/ Face erguida,/ Vontade transparente/ Inteira onde os outros se dividem." Ela assim disse de Santa Clara de Assis, mas foi como se de si dissesse o que disse.

Às vezes, calo-me e fico à espera da sua voz, essa voz magnética como um íman que atraísse o mundo, porque nela mesmo o esperado é inesperado. Oiço-a, porque as vozes, mesmo as que partiram, respondem ao chamamento da nossa imaginação e fazem-se presentes contra a distância e o esquecimento. Às vezes, oiço-a dizer poemas que nunca escreveu, pois a morte lho impediu. Esses poemas são feitos das palavras suas que nos deixou - e que agora escrevem a sua ausência. Às vezes, quando o mundo me foge ou eu lhe fujo, quando tudo se parte ou se retrai - é o mundo, outra vez inteiro, que a sua voz me devolve, tal ele devia ser. Porque a voz de Sophia de Mello Breyner está além da sua contingência e aquém da sua eternidade. Por isso, continua a dizer: "O sol rente ao mar te acordará no intenso azul/ Subirás devagar como os ressuscitados/ Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial/ Emergirás confirmada e reunida/ Espantada e jovem como as estátuas arcaicas/ Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto."

Agora, lembro: uma tarde, marcámos encontro no Chiado, onde ela tinha ido. Nessa altura, já estava desavinda com a violência da vida e a confusão da cidade ("Assim a minha vida que era calma/ De repente se tornou ânsia e saudade"). Não quis ir lanchar à Benard, como costumava acontecer noutros tempos. Assim alguém se dirige a um refúgio, fomos para sua casa, na Graça. Logo que chegámos, ela, acendendo uma veemência de mãe, mostrou-me os quadros do Xavier e contou-me muitas histórias deles. A seguir, sem que eu esperasse, levou-me pelo corredor e abriu-me a porta dum sítio "onde não entra ninguém", o seu escritório, longo como uma carruagem de comboio - e eu vi o caderno de capa preta, onde ela escrevia os poemas e de que fala nalguns poemas ("Quando me perco de novo neste antigo/ Caderno de capa preta de oleado...").

Na mesa da casa de jantar, havia pão torrado e compotas à nossa espera. E o chá abria lentamente como um ouro leve na loiça lisa e branca, dando às horas uma alegria justa. Depois, fomos para a grande sala e falámos de tudo o que havia para falar. Havia nela um desassombro antigo e ainda uma inteligência maliciosa.

De repente, a casa ficou sem mais ninguém e, no meio das nossas palavras, o silêncio era concreto como os frutos que estavam na fruteira. Quando se erguia, a voz dela, magnética como um íman que atraísse o mundo, dizia exactidão, êxtase e exaustão. E a sua atenção fazia-se tão exterior que não deixava espaço para abrir à dúvida o seu caminho. Mas a certeza dela era soletrada e feita de alertas. Para guardar aquele estar ali tão intenso, escrevi, à maneira dela, uma memória que começava: "Como num quadro de Vermeer,/ a tarde era longa, lenta, limpa/ e atenta."
(...)
Sophia morreu há cinco anos, mas a morte, que ela tinha antecipado em versos de uma beleza funda e frontal, não prevalecerá sobre os seus poemas. Estes são-nos próximos como os instantes que vivemos. Por isso, os digo muitas vezes a mim mesmo, ouvindo-os ainda na sua voz rouca e aérea. Por isso, leio a letra frágil com que me dedicou os seus livros e a sua presença demora-se em mim. Por isso, olho a fotografia do Eduardo Gageiro, que tenho dela: Sophia está sentada à mesa de trabalho, junto à janela aberta. Fuma, cisma e escreve. Lá fora, vê-se o vento atravessar a árvore e vir ao nosso encontro...

José Manuel dos Santos, in "Actual" (Expresso)

segunda-feira, 29 de junho de 2009

De um amor que se revela sofrimento


E depois é este céu cinzento,
Esta luz filtrada e escura
Onde nada é já o que sonhámos
Onde nada é eterno, nada dura.

E és tu debruçada na janela
Abandonada a esse triste pensamento
De uma vida desfeita de tão fria
De um amor que se revela sofrimento.

E é tudo o que sonhámos em abraços
No meio de dois beijos prometidos
E é o nada em que agora nos amamos
Perdidos em futuros não cumpridos.



domingo, 21 de junho de 2009

Nos degraus do cais, em silêncio


Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

Nuno Júdice, in 'A Partilha dos Mitos'

sábado, 20 de junho de 2009

Da memória que fica delas


Em bando passam aves e eu voando vou com elas
Mas assim que aterro e quebro as asas
Recolho-me à sombra, que não das aves,
Das aves não
Mas da memória que fica delas
Passam lestas chilreando leves
E minh´alma, ninfa triste em seu novelo,
Fica só daqui a vê-lo
O bando não
Mas o que fica de passarem aves.

Arménio Vieira

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ser céu sol e estrelas


digo que te amo
sorris e eu amo, digo que te quero
sorris e eu quero, dizes em sonhos

em sonhos que já tive, onde desejei ser céu sol e
estrelas para que te pudesse olhar eternamente

Jorge Reis-Sá, in 'A Palavra no Cimo das Águas'

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Mais do que te sei dizer



Por mais que a vida nos agarre assim
Nos troque planos sem sequer pedir
Sem perguntar a que é que tem direito
Sem lhe importar o que nos faz sentir

Eu sei que ainda somos imortais
Se nos olhamos tão fundo de frente
Se o meu caminho for por onde vais
A encher de luz os meus lugares ausentes

É que eu quero-te tanto
Não saberia não te ter
É que eu quero-te tanto
É sempre mais do que te sei dizer
Mil vezes mais do que eu te sei dizer

Por mais que a vida nos agarre assim
Nos dê em troca do que nos roubou
Às vezes fogo e mar, loucura e chão
Às vezes só a cinza que sobrou

Eu sei que ainda somos muito mais
Se nos olhamos tão fundo de frente
Se a minha vida for por onde vais
A encher de luz os meus lugares ausentes

É que eu quero-te tanto
Não saberia não te ter
É que eu quero-te tanto
É sempre mais do que te sei dizer
Mil vezes mais do que eu te sei dizer

Mafalda Veiga, in 'Chão'
(para ti, porque todos os dias (mesmo hoje) sinto isto)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O justo momento


"morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento"

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho e Outros Poemas'
(para a minha avó que morreu há seis meses)

segunda-feira, 1 de junho de 2009