terça-feira, 27 de outubro de 2009

Deste terrível isolamento


"(...)
«Que solidão?» , pergunto-lhe eu. «A solidão que agora reina por todo o lado, especialmente no nosso século, e ainda vem longe o fim dela. Porque cada um, hoje em dia, deseja isolar cada vez mais a sua pessoa, quer experimentar em si mesmo a plenitude da vida e, no entanto, o resultado é que todos os seus esforços, em vez da plenitude da vida, acabam num suicídio absoluto, porque em vez da plenitude da definição da sua personalidade entra num isolamento total. Porque todos, no nosso século, se separaram, cada qual se isolando na sua toca, cada qual se afastando do outro, escondendo-se e escondendo o que possui, acabando por rejeitar os outros e ser rejeitado pelos outros. Acumula a sua riqueza em solidão e pensa: que forte eu sou, que rico... e mal sabe, o louco, que quanto mais acumula mais mergulha na impotência suicida. Porque está habituado a contar apenas consigo e, como unidade, se separou do comum, habituou a sua alma a não acreditar na ajuda dos outros, nas pessoas e na humanidade e apenas receia que o seu dinheiro e os seus direitos adquiridos se percam. Hoje, por todo o lado, a mente humana irónica começa a perder consciência de que o verdadeiro sustento do indivíduo não consiste no seu esforço pessoal e solitário, mas num esforço em comunidade humana. É inevitável, porém, que chegue o fim deste terrível isolamento e que se compreenda, de uma vez por todas, como é antinatural esta separação de uns e de outros. Será assim o espírito da época, e as pessoas espantar-se-ão por terem passado tanto tempo na escuridão, sem verem a luz.»
(...)"

Fiódor Dostoiévsky, in 'Os irmãos Karamázov'

sábado, 24 de outubro de 2009

De tristeza, de incerteza



"As coisas estão passando mais depressa
O ponteiro marca 120
O tempo diminui
As árvores passam como vultos
A vida passa, o tempo passa
Estou a 130
As imagens se confundem
Estou fugindo de mim mesmo
Fugindo do passado, do meu mundo assombrado
De tristeza, de incerteza
Estou a 140
Fugindo de você
Eu vou voando pela vida sem querer chegar
Nada vai mudar meu rumo nem me fazer voltar
Vivo, fugindo, sem destino algum
Sigo caminhos que me levam a lugar nenhum

O ponteiro marca 150
Tudo passa ainda mais depressa
O amor, a felicidade
O vento afasta uma lágrima
Que começa a rolar no meu rosto
Estou a 160
Vou acender os faróis, já é noite
Agora são as luzes que passam por mim
Sinto um vazio imenso
Estou só na escuridão
A 180
Estou fugindo de você

Eu vou sem saber pra onde nem quando vou parar
Não, não deixo marcas no caminho pra não saber voltar
Às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim
Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou viver assim

O ponteiro agora marca 190
Por um momento tive a sensação
De ver você a meu lado
O banco está vazio
Estou só a 200 por hora
Vou parar de pensar em você
Pra prestar atenção na estrada"

Roberto Carlos por Marília Pera, in 'Elas Cantam Roberto Carlos'

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O meu futuro


"Foste o meu passado
e serás o meu futuro
mesmo quando o futuro
já tiver acabado

O princípio e o termo
a luz e o escuro

quando o fim do presente
já tiver terminado"

Maria Teresa Horta
(para ti, neste dia especial...)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Este céu


"Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração"


Ruy Belo

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Se bastasse

´

"Ai meu amor se bastasse
Saberes que eu te amo tanto
E cada vez que eu cantasse
Ai meu amor se bastasse
Saberes que é por ti que eu canto

Ai meu amor se bastasse
O que a cantar eu consigo
E mesmo que eu não cantasse
Ai meu amor se bastasse
O que a falar eu não digo

Ai meu amor se bastasse
Eu saber que te não basta
E na vida que eu gastasse
A cantar eu reparasse
Que a nossa vida está gasta

Se o que eu tenho p'ra te dar
Quando eu canto te chegasse
Se isso pudesse bastar
Se me bastasse cantar
Ai meu amor se bastasse"

Aldina Duarte

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Este poema sobre ti


"há qualquer na tua boca no mover dos teus lábios quando
nessa língua ponte entre nós dizes a língua e outra qualquer coisa
quando dizes a tua boca original a mesma que tantas vezes me dás
no mover de ti e no ondular do som da tua voz quando estou sobre ti
ou tu sobre mim e este poema sobre ti e tantas vezes nunca são
muitas vezes na tua língua
a palavra tem o som da tua voz
em qualquer boca até
na minha
pronúncia atrapalhada até para dizer o teu nome e há qualquer coisa
nesta ponte que fazemos que estendemos em tapete futuro
qualquer coisa metálica e quente uma espécie de fundição no
mover dos lábios para tanto no mover de ti"

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

E o azul de repente


"Tudo ocorreu de repente.
De repente caiu a luz do dia no solo,
de repente apareceu o céu,
e o azul de repente.
Tudo ocorreu de repente,
de repente começou a sair o fumo da terra,
de repente cresceu a planta, de repente saiu a flor.
De repente amadureceu a fruta.

De repente.
De repente,
tudo ocorreu de repente.
A rapariga de repente, o rapaz de repente,
as ruas, o campo, os gatos e os humanos...
O amor de repente
e a alegria de repente."

Orhan Veli Kanık (traduzido por M. Tiago Paixão)

domingo, 18 de outubro de 2009

De certos encontros de acaso


"Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»"

José Tolentino Mendonça, in 'A Que Distância Deixaste o Coração'

sábado, 17 de outubro de 2009

De faces nuas


"Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água."

Fiama Hasse Pais Brandão

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Mais um dia que passou


"Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava
Não é nada, meu amor, foi um pássaro
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente na tua mão. "

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Com passos de reter tempo

"Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."
José Gomes Ferreira
para a minha avó, que morreu há 10 meses.