terça-feira, 31 de outubro de 2006

Facto


"Nós não sabemos aquilo que queremos e, no entanto, somos responsáveis por aquilo que somos - este é o facto."
Jean-Paul Sartre

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Sagrado


"(...) Mas do que eu mais gosto é de quando me acompanhas em passeio. Às vezes saio só, mas tu vens ter comigo ao caminho. Ou de relembrar-te outrora quando te via passar. Havia em ti uma sacralidade intocável, na tua anca fina ondeando por entre outras raparigas. E essas jovens eu sentia que as podia tocar sem estremecer, sem uma grande distância até elas. Mas a ti envolvia-te um halo numinoso e eu sentia que num gesto meu ia a tua profanação sacrílega, qualquer coisa assim como creio já ter dito. Violar o sagrado de ti, que odioso prazer na minha violência. Transpor a enorme distância que ia da minha condição terrestre à tua sacralidade e para lá dela ao teu corpo. Via-te às vezes com outras mulheres e sentia bem que não eras da sua condição. Porque elas eram materiais concretas manipuláveis e tu eras de uma outra ordem de se ser. Como uma deusa que estivesse de passagem, jamais te falei assim porque tu ignoravas o que havia em ti de transcendência e querias que não houvesse e eu fosse mais quotidiano e talvez que te magoasse. Querias ser real para mim e que eu praticasse a tua realidade. Talvez que se te batesse, palavra, às vezes penso, no desespero de relembrar quanto te amei para além de ti e quanto tu querias que não. (...)"

Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

domingo, 29 de outubro de 2006

Fado Perdição





"Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar
A dança verde das ondas
Soluça no meu olhar
Tentei esquecer as palavras
Nunca ditas entre nós
Mas pairam sobre o silencio
Nas margens da nossa voz
Tentei esquecer os teus olhos
Que não sabem ler nos meus
Mas neles nasce a alvorada
Que amanhece a terra e os céus
Tentei esquecer o teu nome
Arrancá-lo ao pensamento
Mas regressa a todo o instante
Entrelaçado no vento
Tentei ver a minha imagem
Mas foi a tua que vi
No meu espelho, porque trago
Os olhos rasos de ti
Este amor não é um rio
Tem abismos como o mar
E o manto negro das ondas
Cobre-me de negro o olhar
Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar"

Cristina Branco, in 'Murmúrios'

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Espera


"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes cegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo os meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Estarei contigo


"Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços! Te enrustiste em minha vida; e cada hora que passa é mais porque te amar. A hora derrama o seu óleo de amor, em mim, amada... E sabes de uma coisa? Cada vez que o sofrimento vem, essa saudade de estar perto, se longe, ou estar mais perto se perto, - que é que eu sei! Essa agonia de viver fraco, o peito extravasado, o mel correndo; essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso que é bem capaz de confundir o espírito de um homem - nada disso tem importância quando tu chegas com essa charla antiga, esse contentamento, essa harmonia, esse corpo! E me dizes essas coisas que me dão essa força, essa coragem, esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice, meu verso, meu silêncio, minha música! Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada, sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... Coisa incompreensível! A existência sem ti é como olhar para um relógio só com o ponteiro dos minutos. Tu és a hora, és o que dá sentido e direção ao tempo, minha amiga mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada! Milhões amada! Ah! criatura! quem poderia pensar que Orfeu: Orfeu cujo violão é a vida da cidade e cuja fala, como o vento à flor, despetala as mulheres - que ele, Orfeu, ficasse assim rendido aos teus encantos! Mulata, pele escura, dente branco, vai teu caminho que eu vou te seguindo no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia, para os braços sem fim do teu amigo! Vai tua vida, pássaro contente! Vai tua vida que eu estarei contigo!"
"Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes
in "Que Falta Você Me Faz" por Maria Bethânia

terça-feira, 24 de outubro de 2006

O segredo do futuro


"El secreto de la felicidad, o, por lo menos, de la tranquilidad, es saber separar el sexo del amor. Y, si es posible, eliminar el amor romántico de tu vida, que es el que hace sufrir. Así se vive más tranquilo y se goza más, te aseguro."
Mario Vargas Llosa, in 'Travesuras de la niña mala'
(Roubado
daqui)

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Não, obrigado!

Intemporal


"Tenho saudades tuas.
Sempre me achaste um fraco. E de facto ao pé de ti eu era vulnerável. Quebraste as barreiras do meu isolamento e com isso destruíste-me as defesas. Na altura, disseste, era o preço a pagar pelo teu amor. Nunca fomos felizes e ainda assim, a tua morte acabou por tornar-se na forma de me pertenceres para sempre. Porque me apropriei da tua memória e agora sinto que só a mim me pertences. É irónico, não é? Enquanto viveste nunca conseguimos realmente pertencer um ao outro. E agora já não há nada que te arranque de mim porque a tua existência tornou-se intemporal. Há noites em que sei perfeitamente que estás ao meu lado, porque sinto o teu calor, porque ouço o teu respirar e até consigo tocar-te. Imagino-me a percorrer o teu corpo com as minhas mãos, com um toque suave que te causa arrepio. E tu a deixares-te amar de um modo confortável e descomprometido, como nunca fizeste."
Pedro Rapoula, in 'Iniciação à Tristeza'

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Cansaço


"La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme la guérison pour le malade,
Comme de sortir après avoir souffert.

La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le parfum de la myrrhe,
Comme de s'asseoir sous un dais un jour où souffle la brise.
La mort est à mes yeux aujourd'hui,
Comme le parfum du lotus,
Comme de s'asseoir sur la rive du pays de l'ivresse.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le chemin de la pluie battante,
Comme le retour du soldat à la maison.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme une éclaircie dans le ciel,
Comme de comprendre une énigme.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le désir d'un homme de revoir sa maison
Après de longues années de captivité."



texto popular do antigo Egipto, da XIIª dinastia
(1990 AC, aproximadamente)

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Burning Heart


“He woke her then, trembling and obedient she ate that burning heart out of his hand. Weeping, I saw him then depart from me.
Could he daily feel a stab of hunger for her and find nourishment in the very sight of her? I think so. Would she see through the bars of his plight and ache for him?”
Dante Alighieri, in 'La Vita Nuova'

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Infância


"(...) Vou contar-te uma história. A minha mãe sempre trabalhou muito, fora de casa. Chegava sempre tarde e eu já estava deitado. Naqueles momentos após eu me deitar, ficava muito direito e quieto na cama, esperando que a porta de casa abrisse. Era terrível aquela angústia, de não querer adormecer sem ouvir o barulho da chave que significava que provavelmente a mãe iria ao quarto dar-me um beijo de boa noite. Acabava sempre por adormecer, e no meio da revolta da manhã seguinte, ficava em mim uma sensação de vazio que me deixava inseguro e muito só. Pior que isso era estar acordado e perceber que os passos dela se encaminhavam para todos os lados menos para o meu quarto. Aí sim, sofria a sério. Sentia algo a quebrar-se por dentro e penso, agora, que foi assim que fui perdendo a noção de ser criança. Conto-te isto porque nessa noite, todas essas imagens e sensações da minha infância voltaram a percorrer o meu cérebro. Acho que por instantes voltei a ser a criança solitária que fui. Desta vez não chorei, desta vez limitei-me a apanhar os pedacinhos de mim."
Pedro Rapoula, in 'Iniciação à Tristeza'

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Fragilidade


"Como poderia eu ter imaginação para te reconstituir na sólida delicadeza da tua fragilidade? (...) O amor e a morte inserem-se um no outro, deves saber. Mas eu sobrevivi e isso é uma condenação. Penso-te e o teu esplendor renasce-me no meu pensar e a minha idade retrai-se quando me apareces. E a eternidade em que se vive, mesmo se a velhice é real, restabelece-me igual a ti que nunca envelheceste. E não me perguntes porque te escrevo se tudo é em vão. Mas há o meu desejo de te fixar na palavra escrita que te diz, para ficares aí com o milagre que puder. É Primavera e tudo é nítido no seu ser real. Os campos cobrem-se de relva, as flores despertam da sua hibernação, passa na aragem o perfume da vida, de tudo o que é vivo no mundo. A luz nítida demora-se no cimo dos montes e eu olho-a na sua agonia para um pouco existir no que te digo. Ou no teu nome de que nao gostava muito e agora renasce em sonoridade branda quando o penso ou o escrevo ou o digo em voz alta."
Virgilio Ferreira, in 'Para Sempre'

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Realista


"Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel, às promessas interiores. Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome , ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Inocência


"Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto. O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência."

Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Para ti


"Não se pode defender o que não se ama, e, não se pode amar o que não se conhece..."

Autor desconhecido

Crepúsculo


"Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo."

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

domingo, 8 de outubro de 2006

Infinito da tua perfeição


"... Vou-te amar intensamente como nunca. Amei-te com avidez precipitação impreparação juvenil. Havia uma distância enorme de permeio e eu tinha que a preencher. Amei-te depois com luxúria como se diz no catecismo. E amei-te como cumprimento de um horário semanal. (...) Vou pôr na rua da lembrança tudo o que não for a tua nudez, a amargura vexame sofrimento. Mesmo as alegrias que não são para aqui. Mesmo os filhos que também não - a vida inteira que passou. Preciso tanto de te amar - e como te vou amar? Não sei. Vou-te amar no infinito da tua perfeição."

Vergílio Ferreira, in 'Em nome da terra'

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Partida



"A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida."

Sophia de Mello Breyner, in 'Poesias'

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Outro


"Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço."

Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia'

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Pedra Escura


"Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto os meus dias
quebrados na cintura."


Eugénio de Andrade, in "Palavras interditas até amanhã"

Segredos


"Meu amor, porque me prendes?
Meu amor, tu não entendes,
Eu nasci para ser gaivota.
Meu amor, não desesperes,
Meu amor, quando me queres
Fico sem rumo e sem rota.

Meu amor, eu tenho medo
De te contar o segredo
Que trago dentro de mim.
Sou como as ondas do mar,
Ninguém as sabe agarrar,
Meu amor, eu sou assim.

Fui amada, fui negada,
Fugi, fui encontrada,
Sou um grito de revolta.
Mesmo assim, porque te prendes?
Foge de mim, não entendes?
Eu nasci para ser gaivota.
"
Paulo Valentim por Katia Guerreiro*, in "Nas mãos do Fado"
* Por ocasião do Dia Mundial da Música