quarta-feira, 16 de maio de 2007

Espaço negro

"Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdi­çados antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás. E não fui. (...)
Abro e fecho a porta da rua. A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço negro que as separa."

José Luís Peixoto in 'Nenhum Olhar'

2 comentários:

Graça disse...

Gosto muito deste excerto, talvez tenha até sido eu que o tenha recortado do livro e posto a circular via blogosfera, não sei, gostava de acreditar que sim.

E também gosto muito deste blog, ou do que me li no que aqui está. Os blogs são para isso, se calhar.

Anónimo disse...

"Hemos perdido aun este crepúsculo.
Nadie nos vio esta tarde con las manos unidas
mientras la noche azul caía sobre el mundo." Pablo Neruda