"(...) Mas insensivelmente os lábios foram-se separando um pouco. Um dente. Subtil iluminado de pacificação serenidade alegria de ser - se te demorasses um pouco. E seres aí a vida rodeada de verdade por todos os lados. Um dente visível. Mas os lábios separaram-se um mais e são agora um sorriso claro solar. E instintivamente deixei que se demorasse aí até eu poder reconhecer-lhe o esplendor. É um riso, não vou cometer a imprudência de o perder. Está na linha do céu e do mar, não vou. A juventude sem uma força excessiva de o ser. A confiança - não vou. O futuro dos séculos a quererem vir. A segurança contra o medo a vileza a degradação. A morte. Nem na realidade há nele futuro algum. Porque todos os séculos do futuro e do passado se conglomeram ali no instantâneo presente. O riso. Sem olhos nem face. Nem cabelos. Porque toda a sua ausência está lá. São olhos iluminados de uma festa terrível, cabelos de ar. Fixar-te para sempre, riso da minha pacificação. Mas pouco a pouco houve primeiro um estremecimento aos cantos da boca. Pouco a pouco um encrespado na placidez dos lábios repousados um no outro e depois a boca alargada, vejo-a alargar-se por dentro do meu pavor. E os dentes já visíveis onde o ódio começa, a boca toda aberta, aberta. Rasgada, escancarada até ao limite do seu possível. Os dentes, a língua. E de súbito, entalado na garganta, de súbito um grito horríssono, ouço-o. Tapo os ouvidos, ouço-o. Horror, ódio, desespero. Vem das cavernas do Mundo. Das trevas de todas as noites. Rebenta-me os ouvidos, o crânio. Urro de massacre, a terra treme. Olho a boca selvagem, os dentes carnívoros. A língua. Aguardo que o urro se acabe. E com efeito, subitamente cessou. Mas a imagem imobilizou-se no grito enorme que já não ouve. É o horror inaudível, mas presente assim na imagem fixa. Sem o estridor que a estremecesse. Mais plausível no imaginário de o ouvir.(...)"
domingo, 14 de outubro de 2007
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1 comentário:
V. Ferreira é V. F.. Os lábios articulam as palavras e a fala, mas mais importante do que as palavras impressas, escritas, são as palavras em conversa que os lábios e o seu corpo possibilitam. Gostei de vir até aqui. Roubei-te a foto, mas vou citar-te. Vai até ao poemar-te. Bom fim-de-semana. Tudo de bom.
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