segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Sei bem o que faço

'Existem pessoas para quem a vida não chega e depois existem as outras para quem a vida é demasiado longa', pensou com ironia enquanto tomava o último dos 54 comprimidos que andava a juntar para o dia em que perdesse a paciência de uma vez por todas. Tinha sido exactamente isso que escrevera na nota de despedida, uma nota breve, concisa e talvez explicativa demais para a sua personalidade simples.
Tinha escolhido o último dia do ano para pôr termo à sua triste existência. Arrumara a roupa e fizera lotes de cd's e livros que separara com um post-it para cada um dos seus amigos mais chegados. Depois de limpar toda a casa dedicou um tempo especial a preparar a sua cerimónia fúnebre. Queria que fosse uma coisa simples, claro, mas queria que fosse absoluta e esteticamente inesquecível. Para o velório colocou no seu I-pod uma playlist a que chamou 'Série Músicas que Arrepiam' com as músicas que deveriam passar em repetição até que tudo aquilo acabasse. Eram as suas músicas favoritas. Cada uma delas tinha uma mensagem importante para cada um dos seus amigos e cabia-lhes agora decifrar esse puzzle.
Escolheu para que lhe vestissem um fato cinzento escuro, uma camisa branca e uma gravata roxa, a sua predilecta, que por ter pequenas coroas lhe garantia sempre uma ou outra piada que envolvia a República e a Monarquia. Escolheu a roupa interior com o mesmo cuidado com que escolheria se fosse o dia do seu casamento. Engraxou os sapatos e arranjou tudo colocando em cada sítio post-its amarelos que fossem indicando o caminho a quem tivesse que o preparar para o seu funeral.
À medida que o tempo passava e os comprimidos começavam a fazer efeito ia ficando cada vez mais seguro de que tinha tomado a decisão correcta. Estava, evidentemente, com medo de que as coisas não corressem bem, mas por outro lado sabia que a libertação era garantida.
Deitou-se finalmente na cama feita de lavado, colocou ao seu lado uma Bíblia e na mão prendeu o terço de plástico que brilha no escuro que trazia habitualmente ao pescoço. Enquanto as pálpebras se iam tornando cada vez mais pesadas começou a rezar fixando a fotografia dos pais que tinha na cómoda do seu quarto. Rezava para que soubessem sobreviver à sua morte, para que compreendessem o seu cansaço, para que perdoassem a sua cobardia. Antes de fechar os olhos pela última vez disse bem alto 'Perdoa-me Senhor, mas sei bem o que faço". Lembrou-se no último instante da resposta de Virgínia Woolf à pergunta "where will we go when we die?" que a sua pequena sobrinha lhe dirigira. "We go back to where we came from"... Suspirou fundo e deixou-se morrer. Morria no auge das suas capacidades, consciente de que se vivesse caminharia inexoravelmente por uma vida de desencanto e desilusão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Quem está inquieto sou eu. Mesmo sendo só ficção não é um bom final de ano."Alma até Almeida", Pedro!

Anónimo disse...

'De tanto levar flechada do teu olhar
Meu peito até parece sabe o que?
Tábua de tiro ao alvaro
Não tem mais onde furar / não tem mais

Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automover
Mata mais que bala de revolver'

bom ano Pedro, até logo
J.