"(...) lembro-me de estar com a minha mãe e sair do carro com ela. havia um espaço verde e um pequeno recreio infantil um pouco adiante. estávamos em lisboa para assuntos do meu pai na capital. fizéramos a viagem na nacional antiga, durante seis horas, talvez mais, e não sabíamos de nada porque a rádio esteve sempre desligada. lembro-me de haver uma luz clara no recreio. não tinha frio. um menino disse-me, eu cá vou para o escorrega, e eu nunca mais esqueci essa sua expressão. dizia eu cá para tudo. parecia-me estranho. e menos igual vira um menino tão claro que me confunde ainda hoje a memória, não sei se em verdade o dia estava luminoso, se era o cabelo dele que o acendia em nosso redor.
em angola, dissera-me anos mais tarde a minha professora, os meninos são pretos como a noite. eu, nessa altura, não me lembrava de nada. nem dos meninos da noite nem do menino do dia vinte e cinco de abril de setenta e quatro. acho que só aos oito ou nove anos me lembrei do sucedido. comprovei a história com os meus pais. apareceu-me como uma encarnação passada e mediu a minha vida com outra extensão. na minha meninice livre, permitida numa vila pequena como era paços de ferreira, abria-se um fosso no tempo e também lembrei como corremos, eu e a minha mãe, aos gritos do meu pai aflito sob os ruídos dos tiros. corríamos de cabeça baixa que a minha mãe era assim que fazia, e eu sei que ainda corri um pouco e depois fui tomado no colo. não nos deixámos parados dentro do carro. o meu pai imediato nos levou dali para fora. a capital estava a ser revolucionada, e ainda que as pessoas confusas achassem que era para o bem, os tiros ouviam-se e pareciam tão rentes como coisas do mal.
eu expliquei à minha professora que não me lembrava dos meninos de áfrica, mas que me lembrara de estranhar os meninos mais claros de portugal. na altura ainda lhe disse algo sobre uma menina da classe. tinha os cabelos muito loiros e alguém lhe chamava de francesa. para a frança emigravam as pessoas todas daquela zona, por isso, o estrangeiro para nós era paris.
no liceu fiz uma qualquer redacção sobre o vinte e cinco de abril, não sei bem que coisa disse – a nota não foi muito boa – sei o que quis dizer. no dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. conheci e aceitei a diferença. que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde. haveria de entender, vez por todas, que não desperdiçaria nunca coisa tão cara que um só dia me trouxe. fiquei inchado diante da professora a sentir-me bom aluno.
assim, vivi em paços de ferreira, onde fiz a escola primária, e lembro da cidade – uma vila muito pequena, então – como um lugar pacífico onde se brincava na rua sem medos, entre riachos e mato, terras que aluíam e caminhos de paralelo a prejudicar as rodas das nossas bicicletas. a escola onde andei foi deitada abaixo em favor de um prédio horrível. a casa onde vivi – a casa da dona alice, devota da santa sílvia cardoso – esteve em ruínas muito tempo a albergar toxicodependentes. agora, disse-me o senhor luís magalhães, meu amigo de freamunde, foi deitada abaixo. fui verificar e tenho uma só fotografia onde se vêm as suas paredes rosa. à frente dela estou eu, com sete anos talvez, uns calções brancos, cara de miúdo bem comportado, muitos sonhos a nascer. no nosso quintal imenso apareceram prédios. os meus amigos de infância, com quem perdi o contacto, são estofadores de móveis, diabéticos, casados, gordos, donos de fábricas e distantes.
era uma casa imensa para mim, dividida ao meio por um longo corredor, como uma casa com risca ao meio, e eu podia ir da sala ao meu quarto de bicicleta. era cor de rosa velho e tinha heras agarradas aos muros, muitas, assim a tapar as vistas e a criar uma privacidade que nos possibilitava, aos miúdos, acampar no quintal pelo verão, cheios de medo que viesse um bicho qualquer que nos fizesse viver uma aventura maravilhosa. vivíamos assim, como se as coisas boas também nos dessem medo, de tanta ansiedade por elas."
em angola, dissera-me anos mais tarde a minha professora, os meninos são pretos como a noite. eu, nessa altura, não me lembrava de nada. nem dos meninos da noite nem do menino do dia vinte e cinco de abril de setenta e quatro. acho que só aos oito ou nove anos me lembrei do sucedido. comprovei a história com os meus pais. apareceu-me como uma encarnação passada e mediu a minha vida com outra extensão. na minha meninice livre, permitida numa vila pequena como era paços de ferreira, abria-se um fosso no tempo e também lembrei como corremos, eu e a minha mãe, aos gritos do meu pai aflito sob os ruídos dos tiros. corríamos de cabeça baixa que a minha mãe era assim que fazia, e eu sei que ainda corri um pouco e depois fui tomado no colo. não nos deixámos parados dentro do carro. o meu pai imediato nos levou dali para fora. a capital estava a ser revolucionada, e ainda que as pessoas confusas achassem que era para o bem, os tiros ouviam-se e pareciam tão rentes como coisas do mal.
eu expliquei à minha professora que não me lembrava dos meninos de áfrica, mas que me lembrara de estranhar os meninos mais claros de portugal. na altura ainda lhe disse algo sobre uma menina da classe. tinha os cabelos muito loiros e alguém lhe chamava de francesa. para a frança emigravam as pessoas todas daquela zona, por isso, o estrangeiro para nós era paris.
no liceu fiz uma qualquer redacção sobre o vinte e cinco de abril, não sei bem que coisa disse – a nota não foi muito boa – sei o que quis dizer. no dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. conheci e aceitei a diferença. que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde. haveria de entender, vez por todas, que não desperdiçaria nunca coisa tão cara que um só dia me trouxe. fiquei inchado diante da professora a sentir-me bom aluno.
assim, vivi em paços de ferreira, onde fiz a escola primária, e lembro da cidade – uma vila muito pequena, então – como um lugar pacífico onde se brincava na rua sem medos, entre riachos e mato, terras que aluíam e caminhos de paralelo a prejudicar as rodas das nossas bicicletas. a escola onde andei foi deitada abaixo em favor de um prédio horrível. a casa onde vivi – a casa da dona alice, devota da santa sílvia cardoso – esteve em ruínas muito tempo a albergar toxicodependentes. agora, disse-me o senhor luís magalhães, meu amigo de freamunde, foi deitada abaixo. fui verificar e tenho uma só fotografia onde se vêm as suas paredes rosa. à frente dela estou eu, com sete anos talvez, uns calções brancos, cara de miúdo bem comportado, muitos sonhos a nascer. no nosso quintal imenso apareceram prédios. os meus amigos de infância, com quem perdi o contacto, são estofadores de móveis, diabéticos, casados, gordos, donos de fábricas e distantes.
era uma casa imensa para mim, dividida ao meio por um longo corredor, como uma casa com risca ao meio, e eu podia ir da sala ao meu quarto de bicicleta. era cor de rosa velho e tinha heras agarradas aos muros, muitas, assim a tapar as vistas e a criar uma privacidade que nos possibilitava, aos miúdos, acampar no quintal pelo verão, cheios de medo que viesse um bicho qualquer que nos fizesse viver uma aventura maravilhosa. vivíamos assim, como se as coisas boas também nos dessem medo, de tanta ansiedade por elas."
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