quarta-feira, 16 de julho de 2008

Não posso olhar o céu sem me lembrar de ti!

"Lembras-te, meu amor das tardes outonais, em que íamos os dois, sozinhos, passear, para fora do povo alegre e dos casais, onde só Deus pudesse ouvir-nos conversar? Tu levavas, na mão, um lírio enamorado, e davas-me o teu braço; e eu triste, meditava na vida, em Deus, em ti… (...) Tudo, em volta de nós, tinha um aspecto de alma. Tudo era sentimento, amor e piedade. A folha que tombava era alma que subia… E, sob os nossos pés, a terra era saudade, a pedra comoção e o pó melancolia. Falavas duma estrela e deste bosque em flor; dos ceguinhos sem pão, dos pobres sem um manto. Em cada tua palavra, havia etérea dor; por isso, a tua voz me impressionava tanto! (...) Um raio de luar, entrando de improviso no meu quarto sombrio, onde medito, a sós, deixa, a tremer no ar, um pálido sorriso, um murmúrio de luz que lembra a tua voz. O Outono, que derrama ideal melancolia nas almas sem amor, nos troncos sem folhagem, deixa vibrar em mim saudosa melodia, dolorida canção, que lembra a tua imagem. A noite que escurece os vales e os outeiros, e que acende num bosque a voz do rouxinol e a estrela que protege e guia os pegureiros; a lágrima do céu ao ver morrer o sol, acorda, no meu peito, infinda e etérea dor, que à memória me traz a luz do teu olhar. Tudo de ti me fala, ó meu longínquo amor: as árvores, a névoa, os rouxinóis e o mar. Se passo por um lírio, às vezes, distraído, chama por mim, dizendo: "Oh! Não te esqueças dela!" Diz-mo também, chorando o vento dolorido. Diz-mo a fonte, a cantar, diz-mo, a brilhar, a estrela. E vejo, em toda a luz, teus olhos a fulgir. Como adivinho, em tudo, a alma que perdi! Não encontro uma flor, sem o teu nome ouvir. Não posso olhar o céu sem me lembrar de ti! Por isso, eu amo o pobre, o triste e a Natureza, a mãe da humana dor, da dor de Deus a filha. Meu coração, ao pé dum pobrezinho, reza; canta, ao lado dum ninho, ao pé da estrela, brilha. O meu amor por ti, meu bem, minha saudade, ampliou-se até Deus, os astros alcançou. Beijo o rochedo e a flor, a noite e a claridade. São estes, sobre o mundo, os beijos que te dou. Hás-de senti-los, sim, doce mulher de outrora. Ó roxo lírio de hoje, ó nuvem actual! Como dantes teu rosto, a rosa ainda hoje cora; beijo-te, sim, beijando a rosa virginal. Teu espectro divaga, ao longo dos espaços. Teu amor, feito luz, desce do Firmamento. Se abraço um verde tronco, eu sinto, entre os meus braços, teu corpo estremecer, como uma flor ao vento. Soluça a tua dor nas infinitas mágoas, que, no fumo da tarde, eu vejo, além, subir. E paira a tua voz no marulhar das águas, no murmúrio que sai das pétalas a abrir. Se os lábios vou molhar nas ondas duma fonte, queimam meu coração tuas lágrimas salgadas. E, quando acaricia o vento a minha fronte eu bem sinto, sobre ela, as tuas mãos sagradas. Quando a lua, no Outono, envolta em luz funérea, morta, vai a boiar nas águas do Infinito, doira meu frio rosto a palidez etérea, que dantes emanava o teu perfil bendito. Quando, em manhãs d`Abril, acordo, de repente, e vejo, no meu quarto, o sol entrar, sorrindo, julgo ver, ante mim, teu corpo resplendente, tua trança de luz, teu gesto suave e lindo. Descubro-te, mulher, na Natureza inteira, porque entendo a floresta, a névoa, o céu doirado, a estrela a arder, no Azul, a lenha, na lareira e o lírio que, na cruz do outono, está pregado. Falas comigo, sim, da dor, do bem, de Deus. (...) Todo eu medito e cismo. Um vago e etéreo laço prende-me ao teu imenso e livre coração, que abrange o mundo inteiro e ocupa todo o espaço, e que vai povoar a minha solidão. (...) Vivo a vida infinita, eterna, esplendorosa. Sou neblina, sou ave, Estrela, Azul sem fim, só porque, um dia, tu, mulher misteriosa, por acaso, talvez, olhaste para mim."

Teixeira de Pascoaes, in 'Elegia do Amor'

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