quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Cor de chuva, negro pálido


"Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...
Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido. Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela.
Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual."

Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'
(No dia em que, inesperadamente, parto para São Paulo. O estado de saúde da minha avó agravou-se. Viajo para me despedir. Provavelmente não voltarei a vê-la com vida. Há dias assim: tristes.)

3 comentários:

Ângela disse...

Compreendo a sensação.
Infelizmente, já passei pelo mesmo...

Ângela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Mattos e Silva disse...

É um elo que se parte. É uma partida que nos suspende. Estou consigo, Pedro,e rezo pela sua Avó e por si.
Um forte abraço