terça-feira, 16 de dezembro de 2008

De um amor que permanece


Um dia a minha avó Maria do Carmo perguntou-me se era feia. A minha resposta foi muito rápida: “Feia? A avó não é feia, a avó é horrorosa. Parece um camelo”. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos mas nunca mais a minha avó deixou de repetir essa história. Penso que no fundo nunca me terá perdoado a honestidade. E eu também nunca lhe pedi perdão pelo deslize infantil. A realidade é que a minha avó não era feia. Era a única avó que eu conheci e por isso era a melhor avó do mundo. E, arrisco-me a dizer, a mais bonita.
Tínhamos uma relação muito próxima, a minha avó e eu. Ela vivia em São Paulo e eu em Lisboa, mas estávamos ligados por esse espírito de partilha que transcende distâncias e idades. Talvez ela percebesse melhor do que ninguém o meu lado cinzento.
A minha avó Maria do Carmo não era uma avó convencional. Não me fazia bolos e biscoitos. De resto, odiava cozinhar. Não me estragava com mimos nem contrariava a autoridade dos meus pais. Não era uma avó daquelas que as histórias romantizam. Mas era uma mulher admirável na sua vida austera. A minha avó não era uma mulher feliz. Nunca foi. Não tinha medo nem vergonha de o dizer. E eu entendia o que ela queria dizer. Porque o dizia sempre com uma enorme nobreza, sem comiseração. Não tinha pena de si própria. Sabia apenas que o tempo dela não era um tempo afortunado. Na dureza das suas palavras havia também um tom de desencanto perante uma vida que a traiu tantas vezes.
Conversávamos muito. Com ela aprendi que a felicidade é finita e que tudo pode mudar de um momento para o outro. Com ela aprendi que não se pode confiar muito na vida e que nunca devemos estar tranquilos em relação ao futuro. Aprendi que o amor nem sempre tem que ser simpático. Mas tem que ser fiel. E duradouro. E leal. E constante.
Ainda assim, a minha avó, que não era uma avó convencional, nunca negou afectos. Amava como uma avó deve amar. Mas com um maior sentido de dever. E de responsabilidade. Senti a sua alegria quando nos cuidados intensivos, ligada àquelas máquinas todas, me viu ao seu lado. Percebeu que tinha ido para me despedir. Mas ainda assim, no dia do meu regresso a Lisboa, fez-me acreditar que ainda a veria com vida num futuro bem próximo. Ainda nos rimos de disparates que eu disse. Combinámos ir a Fátima em Julho para rezarmos juntos. E os seus olhos brilharam quando lhe disse que me fazia muita falta. Despedi-me e parti com a certeza de que percebeu o quanto era importante para mim. Não é fácil amar quem é infeliz. Mas isso, claro, eu não lhe disse.
A minha avó vai fazer-me muita falta. Não de uma forma evidente. Mas sei que vai doer muito a sua ausência. Principalmente em Julho, quando for a Fátima rezar e perceber que ela não está comigo.
O Padre Tolentino disse-me há uns dias que “o amor não acaba e o dia não declina”. E no fim é isso que resta. A memória de um amor que permanece. A certeza de uma saudade que não vai desaparecer. Nunca.
Porque a minha avó era uma grande devota de Nossa Senhora, e porque morreu no dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal, termino com palavras que São Bernardo escreveu:

«Ó tu, quem quer que sejas, que te sentes longe da terra firme, arrastado pelas ondas deste mundo, no meio de borrascas e tempestades, se não queres soçobrar, não tires os olhos da luz desta estrela.
Se o vento das tentações se levanta, se o escolho das tribulações se interpõe em teu caminho, olha a estrela, invoca Maria.
Se és balouçado pelas vagas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olha a estrela, invoca Maria.
Se a cólera, a avareza, os desejos impuros sacodem a frágil embarcação da tua alma, levanta os olhos para Maria.
Se, perturbado pela lembrança da enormidade dos teus crimes, confuso à vista das torpezas da tua consciência, aterrorizado pelo medo do Juízo, começas a deixar-te arrastar pelo turbilhão da tristeza, a despenhares-te no abismo do desespero, pensa em Maria.
Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria.
Que o seu nome nunca se afaste dos teus lábios, jamais abandone o teu coração; e para alcançar o socorro da intercessão de Maria, não negligencies os exemplos da sua vida.
Seguindo-A, não te transviarás; rezando a Ela, não desesperarás; pensando n’Ela, evitarás todo erro.
Se Ela te sustenta, não cairás; se Ela te protege, nada terás a temer; se Ela te conduz, não te cansarás; se Ela te é favorável, alcançarás o fim.
E assim verificarás, por tua própria experiência, com quanta razão foi dito: "E o nome da Virgem era Maria".» (
São Bernardo)


(No dia em que faço 31 anos)

6 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns por este dia. A vida é bem mais bela do que descreves neste texto. E sei que no fundo sabe-lo bem. Há momentos maus e bons, e é a estes últimos que devemos entregar toda a nossa energia. Tu tens imensos momentos bons. A felicidade que queres pode ser finita, mas a Felicidade, essa permanece sempre...talvez possas aproveitar este dia para fazer novos propósitos que te levem a esta Feliciade que perdura e que enche verdadeiramente!? um beijo

Momentos disse...

Há bons momentos para viver em cada dia.
Felicidades!!

Anónimo disse...

Tens um blog, sem duvida, invejável.
Continua a escrever.
Parabéns.

Ângela disse...

Pelo menos conseguiste despedir-te dela. E ela compreendeu essa despedida, com toda a carga que a mesma trouxe.
Eu não pude fazê-lo... Uma doença miserável não permitiu que a minha avó compreendesse o que lhe diziamos. Mas, todos os dias tenho a certeza de que terá compreendido o que as palavras não dizem...

Gato disse...

para variar... gostei mto mto. heheh

André disse...

Isso é mesmo complicado.
"Não é fácil amar quem é infeliz".
Sinto isto em relação à minha vó também. Com algo de parecido com o que você relatou e com muito de diferente. Mas a idéia é mais ou menos essa.
Apesar de ter gostado do seu texto, eu realmente preferia tê-lo lido em um outro momento... Não agora. =S
Sinto muito pela sua perda.