Às vezes, calo-me e fico à espera da sua voz, essa voz magnética como um íman que atraísse o mundo, porque nela mesmo o esperado é inesperado. Oiço-a, porque as vozes, mesmo as que partiram, respondem ao chamamento da nossa imaginação e fazem-se presentes contra a distância e o esquecimento. Às vezes, oiço-a dizer poemas que nunca escreveu, pois a morte lho impediu. Esses poemas são feitos das palavras suas que nos deixou - e que agora escrevem a sua ausência. Às vezes, quando o mundo me foge ou eu lhe fujo, quando tudo se parte ou se retrai - é o mundo, outra vez inteiro, que a sua voz me devolve, tal ele devia ser. Porque a voz de Sophia de Mello Breyner está além da sua contingência e aquém da sua eternidade. Por isso, continua a dizer: "O sol rente ao mar te acordará no intenso azul/ Subirás devagar como os ressuscitados/ Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial/ Emergirás confirmada e reunida/ Espantada e jovem como as estátuas arcaicas/ Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto."
Agora, lembro: uma tarde, marcámos encontro no Chiado, onde ela tinha ido. Nessa altura, já estava desavinda com a violência da vida e a confusão da cidade ("Assim a minha vida que era calma/ De repente se tornou ânsia e saudade"). Não quis ir lanchar à Benard, como costumava acontecer noutros tempos. Assim alguém se dirige a um refúgio, fomos para sua casa, na Graça. Logo que chegámos, ela, acendendo uma veemência de mãe, mostrou-me os quadros do Xavier e contou-me muitas histórias deles. A seguir, sem que eu esperasse, levou-me pelo corredor e abriu-me a porta dum sítio "onde não entra ninguém", o seu escritório, longo como uma carruagem de comboio - e eu vi o caderno de capa preta, onde ela escrevia os poemas e de que fala nalguns poemas ("Quando me perco de novo neste antigo/ Caderno de capa preta de oleado...").
Na mesa da casa de jantar, havia pão torrado e compotas à nossa espera. E o chá abria lentamente como um ouro leve na loiça lisa e branca, dando às horas uma alegria justa. Depois, fomos para a grande sala e falámos de tudo o que havia para falar. Havia nela um desassombro antigo e ainda uma inteligência maliciosa.
De repente, a casa ficou sem mais ninguém e, no meio das nossas palavras, o silêncio era concreto como os frutos que estavam na fruteira. Quando se erguia, a voz dela, magnética como um íman que atraísse o mundo, dizia exactidão, êxtase e exaustão. E a sua atenção fazia-se tão exterior que não deixava espaço para abrir à dúvida o seu caminho. Mas a certeza dela era soletrada e feita de alertas. Para guardar aquele estar ali tão intenso, escrevi, à maneira dela, uma memória que começava: "Como num quadro de Vermeer,/ a tarde era longa, lenta, limpa/ e atenta."
(...)
Sophia morreu há cinco anos, mas a morte, que ela tinha antecipado em versos de uma beleza funda e frontal, não prevalecerá sobre os seus poemas. Estes são-nos próximos como os instantes que vivemos. Por isso, os digo muitas vezes a mim mesmo, ouvindo-os ainda na sua voz rouca e aérea. Por isso, leio a letra frágil com que me dedicou os seus livros e a sua presença demora-se em mim. Por isso, olho a fotografia do Eduardo Gageiro, que tenho dela: Sophia está sentada à mesa de trabalho, junto à janela aberta. Fuma, cisma e escreve. Lá fora, vê-se o vento atravessar a árvore e vir ao nosso encontro...