quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Do vento que me atraiçoa



"Tenho ciúme das verdes ondas do mar
Que teimam em querer beijar
Teu corpo erguido às marés.

Tenho ciúme do vento que me atraiçoa,
Que vem beijar-te na proa
E morre pelo convés.

Tenho ciúme do luar da lua cheia
Que no teu corpo se enleia
Para contigo ir bailar.

Tenho ciúme das ondas que se levantam
E das sereias que cantam,
Que cantam p'ra te encantar.

Oh meu amor marinheiro,
Oh dono dos meus anelos,
Não deixes que à noite a lua
Roube a cor aos teus cabelos.

Não olhes para as estrelas
Porque elas podem roubar
O verde que há nos teus olhos
Teus olhos da cor do mar."

António de Oliveira Campos por Carminho, em 'Fado'
(para ti.)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Essa alegria


"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.

Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram."

Jorge de Sena, in Metamorfoses
(no dia em que regressa a Lisboa)


quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Coisas de nada



"Deixa lá
Não ligues a coisas de nada
Não faças da vida enxada
Acabar em terra dura

Deixa lá
Não lamentes os nossos fracassos
Não esqueças os meus abraços
Não esqueças as tuas ternuras

Deixa lá
Temos um campo, uma cama um colchão
Um amigo em cada mão
Um jardim para regar

Deixa lá
Muitas flores
Muita força
Muitas dores
Pouca terra
Muitos amores
Muita roupa para passar

Deixa lá
Dorme o teu sono tranquilo
que eu cá fico sonhando
acordado na vida
Deixa lá

Deixa lá
Não ligues a coisas de nada
Não faças da vida enxada
Acabar em terra dura

Deixa lá
Não lamentes os nossos fracassos
Não esqueças os meus abraços
Não esqueças as tuas ternuras

Deixa lá
Que o mundo gira ao contrário,
Se nós temos um relicário
Com segredos de amor"

Trovante
para a minha mãe e para a minha irmã. Melhores dias virão.


terça-feira, 8 de setembro de 2009

A mesma ausência

"Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa -
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência."


Sophia de Mello Breyner Andresen

(para a minha avó, que morreu há nove meses)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Abandono à dor


"(...)
De mim desprendeu-se um desespero selvagem, um abandono à dor que só de ver metia compaixão, uma raiva terrível e impotente, amargura e escárnio, angústia que chorava em voz alta, aflição que não podia encontrar voz, sofrimento mudo. Passei por todas as possíveis epécies de sofrimento. Melhor do que o próprio Wordsworth, sei o que ele queria dizer quando escreveu:

o sofrimento é permanente, obscuro e sobrio e tem natureza do Infinito.

Mas enquanto, por vezes, rejubilava com a ideia de que os meus sofrimentos seriam intermináveis, não podia suportar a ideia de que não tivessem significado. Agora encontro escondida na minha natureza qualquer coisa que me diz que tudo no mundo tem um significado. E o sofrimento mais do que tudo o resto. Que qualquer coisa oculta em mim, como um tesouro num campo, é a Humildade."

Oscar Wilde, in 'Carta a Bosie'

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Aqui neste vazio


"Para além de mim, para além de nós e deste mundo,
Criei um mundo nos meus olhos p'ra te olhar
E por amor refiz o céu e o mar profundo
E se não foi amor que mais pudera eu dar.

Deixei saudades no teu rosto desenhado
Pelo meu jeito infantil de te querer.
Fomos a casa, o sol e o vento apregoado,
Erguendo os braços quando a vida os quis erguer.

Dentro de mim, dentro da infância e deste rio
Deixei o amor ao rio que a alma me prendera
E juro a Deus que fico aqui neste vazio,
P'ra além de mim, p'ra além de nós à tua espera."


Diogo Clemente, por Carminho, em 'Fado'

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Regressar


"Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar."

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Obra Poética I'