quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Que és todo o mundo que tenho




"Por que voltas de que lei
Vem este sentir profundo
Por te saber como sei
Me sinto dona do mundo

Por que espada de que rei
Meu amor é fogo posto
És tanto de quanto amei
Que és tudo de quanto gosto

Por este amor que te tenho
Por ser assim como sou
És inferno donde venho
És o céu para onde vou

Por que voltas de que lei
És tudo de quanto gosto
Me perdi e me encontrei
Nas voltas que tem teu rosto

Por que voltas de que rei
Em meu peito teu desenho
És tanto de quanto amei
Que és todo o mundo que tenho

E de tão rica que estou
Nunca tão pobre fiquei
Por ser assim como sou
E te saber como sei"

Amália Rodrigues por Cuca Roseta

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A criada que queria muito ser princesa


Era uma vez uma criada que queria muito ser princesa. Sonhava todos os dias que chegaria um Príncipe num cavalo branco para a resgatar dessa vida triste. Tanto andou, tanto andou que acabou por casar com um polícia. Foi a farda que a iludiu. Conheceram-se quando ele foi a casa da patroa entregar uma notificação do tribunal. O casamento foi simples mas bonito. Ela foi de branco porque até então não conhecera homem. A menina das alianças foi a vizinha do terceiro andar que era anã e parecia uma criança. Mas não foi de branco porque essa, sim, conhecera homens vários, aliás, conhecia-os pelo menos às terças e quintas das 16h às 18h (menos aos feriados). A criada e o polícia viviam juntos numas águas furtadas na Mouraria. Ele gostava de fado e ela gostava de futebol. A Fátima não iam muito porque era longe mas chegaram a ir e pararam na Casa das Regueifas para comprar uma regueifa que comeram às fatias, torradas com manteiga nessa mesma noite. A vida lá ia andando, uns dias melhor e nos outros pior, como Deus queria. Aos domingos iam à missa e quando ele estava de folga iam a Sintra comer queijadas. Um dia o polícia levou um tiro num bairro problemático de Lisboa e morreu no hospital de Amadora-Sintra. Ela nunca mais foi à missa mas concorreu a um concurso público e passou a lavar as escadas do Palácio da Ajuda que ainda por cima eram muitas. Diz que um dia destes se deixa ficar por lá durante a noite e vai experimentar as camas todas que encontrar. Para ser princesa por um dia. As más linguas dizem que ela quer é experimentar os seguranças todos do palácio. Mas disso eu não percebo nada...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Muoio d'affanno



"FIORDILIGI E DORABELLA
Muoio d'affanno.

FIORDILIGI (piangendo)
Di scrivermi ogni giorno
Giurami, vita mia!

DORABELLA (piangendo)
Due volte ancora
Tu scrivimi, se puoi.

FERRANDO
Sii certa, o cara.

GUGLIELMO
Non dubitar, mio bene.

DON ALFONSO (fra sé)
Io crepo, se non rido!

FIORDILIGI
Sii costante a me sol...

DORABELLA
Serbati fido.

FERRANDO
Addio.

GUGLIELMO
Addio.

FIORDILIGI E DORABELLA
Addio.

FIORDILIGI, DORABELLA, FERRANDO E GUGLIELMO
Mi si divide il cor, bell'idol mio!
Addio! Addio! Addio!"

Così fan tutte
Music by Wolfang Amadeuz Mozart

From the Opernhaus Zürich (Switzerland)
Libretto by Lorenzo da Ponte
Chorus and Orchestra of the Opernhaus Zürich
Conducted by Nikolaus Harnoncourt

Fiordiligi: Cecilia Bartoli
Despina: Agnes Baltsa
Dorabella: Liliana Nikiteanu
Ferrando: Roberto Sacca
Gulielmo: Oliver Widmer
Don Alfonso: Carlos Chausson


FIORDILIGI E DORABELLA
Morro de angústia.
FIORDILIGI (chorando)
Jura-me, minha vida,
que me escreverás todos os dias!
DORABELLA (chorando)
Tu, escreve-me
duas vezes, se puderes.
FERRANDO
Podes estar segura, minha querida.
GUGLIELMO
Não duvides, meu tesouro.
DON ALFONSO (para si)
Eu, se não rir, rebento.
FIORDILIGI
Sê fiel apenas a mim.
DORABELLA
Mantém-te fiel!
FERRANDO
Adeus.
GUGLIELMO
Adeus.
FIORDILIGI E DORABELLA
Adeus.
FIORDILIGI, DORABELLA, FERRANDO E GUGLIELMO
Parte-se-me o coração, belo ídolo meu!
Adeus! Adeus! Adeus!

(Tradução: Jorge Rodrigues / TNSC)

domingo, 8 de novembro de 2009

Da recta claridade dos teus passos


"Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua transparência.
Sem transparência.
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido..."


Miguel Torga
(para a minha avó, que morreu há 11 meses)

sábado, 7 de novembro de 2009

A mesma bruma


Procuro no teus olhos um amor por confirmar
Encontro neles ausência.
La fora o cinzento do céu, o silêncio, a melancolia
E no meu peito a dor de uma dúvida
A inquietação de um abandono,
a bruma.
Sempre a mesma bruma.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Um sentido oculto de crueldade


É da vida que costumamos fitar a morte. A arte faz o contrário: olha a vida a partir de uma morte invivível. Por isso, nos fascinam tanto os seus rostos e as máscaras com que se mostram, como se fossem sinais do impossível.
O texto escrito, aos onze anos, por Adília Lopes e que deu a estas obras a oportunidade de existirem é disto um augúrio. Aí, a morte é olhada da infância (“fiquei parada, contemplando o passarito, como se ele fosse um sinal vermelho que me impedisse de avançar”) e a infância é vista da morte (“jamais esperaria o Sol, as flores, o arco-íris, estava morto, enfim”).
Pedro Rapoula leu esse texto, voltou a lê-lo, e deu-lhe as imagens de uma alucinação serena. Pegou nas andorinhas de Rafael Bordalo Pinheiro e disse às suas mãos para descobrirem nelas um sentido oculto de crueldade.
Paula Rego afirmou-me um dia que, de todos os artistas portugueses, Bordalo Pinheiro é o mais capaz de lhe gerar encantamento e espanto. Quando fala dele a sua voz fica alta como os crimes dos seus quadros. Para isto ser como digo, é porque também ela adivinhou em Bordalo uma crueldade exacta e injusta como a da morte .
Eu olho estas aves de Rapoula, cercadas pelo vidro das suas caixas-sarcófagos, e já não consigo chamar-lhes andorinhas. A morte aproximou-se tanto delas, e aproximou-as tanto de nós, que elas deixaram de ser o que foram.
O Pedro Rapoula falou-me deste seu trabalho trocando a ligeira altivez do seu grupo humano por uma gravidade discreta que o universaliza. Eu sei que ele fica feliz (e só isso lhe bastaria) quando fixa os gestos que as suas mãos fazem para acrescentar as coisas de outras coisas – as que dão leveza ao peso e peso à leveza.
Dizer o nome da morte é falar do tempo e do seu extermínio. Mas o nosso tempo foge do tempo, num fuga veloz a que chama vida. Gosta de sustos falsos, fáceis e fúteis. Não gosta de medos fundos como o prego daquela noite de que um dia falou Cesariny: “a noite como um prego a noite louca/ a noite com árvores na boca”.
Rapoula aponta aqui ao lugar em que o voo ágil das aves se cruza com o voo trôpego do tempo. Esta exposição dá a Saturno e à sua voracidade um corpo frágil (nada há mais frágil do que a beleza) e múltiplo (nada há mais bem dividido do que a morte). Na horizontalidade caída dos pássaros negros há um grito vertical que rege o seu sentido. Mas, chegado aqui, desvio-me, porque lembro o que afirmou Susan Sontag: “ Em vez de uma hermenêutica, nós precisamos de uma erótica da arte”.
Os antiquários são casas de tempo. Neles, há a sombra de uma luz maior do que essa que nos alegra quando a olhamos no fulgor frio das jóias, no reflexo fugidio dos cristais, no brilho liso das porcelanas. Não existe melhor lugar para dar a ver estes pássaros-vítimas do que um antiquário com a sua elegância melancólica e avara. Ninguém como Visconti disse “morte”, quando dizia “beleza”. Assim, não há mais viscontiana nem melhor companhia para esta exposição do que a de uma outra que se chama “Vanitas”, pois em face desta palavra estão as antiquísssimas caveiras que a usam para nos lembrarem a morte e o nosso conflito com ela.
Aqui, estes pássaros torturados acrescentam à melancolia do lugar a crueldade que lhe falta, sem desfazerem a elegância que lhe sobra. Por isso, é acertado que esta exposição se faça sob o nome de “Primavera”, pois esse é o tempo do ano em que tudo nasce para morrer.”

José Manuel dos Santos

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Primavera


"Saí de casa, era uma manhã fria, sem Sol, em que as árvores pareciam mãos enormes buscando a Primavera no céu sem cor...e a chuva caía...caía...
Comecei a andar, abri o guarda-chuva, a rua parecia-me imensa, toda branca, beijada pela chuva. Os pardais voavam nas árvores talvez lobrigando nelas flores, Sol. Senti que era Inverno.
Virei a esquina e ali no chão estava uma bolinha castanha que já não chamaria mais a Primavera... fiquei parada, contemplando o passarito, como se ele fosse um sinal vermelho que me impedisse de avançar.
Olhei, olhei mais, vi uns olhos abertos, uns olhos sem vida e aquelas penas castanhas...não mais enfrentariam o vento...
Não podia fazer nada. Andei. No ar voavam mais pardais e aquele ali, jamais voaria. Andei. Ouvi a mulher das flores a apregoar e a carroça das hortaliças que chiava longínqua.
Na calçada soaram enfim os meus passos, caminhando sozinhos com a chuva...
Olhei para o céu, brilhava nele o Sol, a chuva tinha parado e o arco-íris era uma cavalgada imensa para o infinito...
Pardal...nascia a manhã dos pregões, das conversas, nasciam nos ninhos mais pardais e aquele sozinho, perdido na multidão das pedras brancas, jamais esperaria o Sol, as flores, o arco-íris, estava morto, enfim."


Adília Lopes
(no dia em que inauguro "PRIMAVERA", a minha exposição)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Porque te encontrei



Ouço o disco 'Alina', de Arvo Pãrt. Se a tristeza fosse um som, era este. Sem querer penso no que não devo. Penso nos meus. Nos que perdi. Nos que partiram. Sinto as ausências de todos. E ainda assim, num ano tão fortemente marcado pela morte, estou tranquilo. Porque te encontrei.