sábado, 27 de fevereiro de 2010

Bruma e incerteza


Na escuridão dos teus olhos repousa esse passado que perdemos.
Observas o fogo em silêncio e sentes o futuro feito em cinzas.
Longe estão, já, os dias de luminosas gargalhadas.
Resta apenas este presente de bruma e incerteza.
É tempo de partir - dizes - e apagas a luz para que não te veja chorar.

para a Joana A.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O que tive da vida


"Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci."

Maria do Rosário Pedreira

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Inteira - a minha vida


"Sei o mês exacto por medo de perder-te
Ainda. Como as viúvas indo para a missa
Cobrindo-me de luto, curva
Tão dolorosa, pondão desasteado, mendigo
A quem tivéssemos dado pão. A porção
Exacta, sei-a - eu dividi
Para dar-ta inteira - a minha vida"

Daniel Faria, in 'Poesia'

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

tão estéril


"com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. (...).
fica-se muito zangado como pessoa. não se criem dúvidas acerca disso. fica-se zangado e deseja-se aos outros pouco bem, e o mal que lhes pode acontecer é-nos indiferente ou, mais sinceramente, até nos reconforta, isso sim, como um abraço de embalo, para que não se ponham por aí a arder como o sol, e sobretudo, não nos falem com uma alegriazinha ingénua, de tempo contado, e não nos façam perceber o quanto éramos também ingénuos e nunca nos preparámos para a derrocada de todas as coisas. nunca nos preparamos para a realidade. passamos a ser cidadãos terrivelmente antipáticos, mesmo que façamos uma gestão inteligente desse desprezo que alimentamos crescendo. e só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas.
como faria falta ferrarmos toda a gente e vingarmo-nos do mundo por manter as primaveras e a subitamente estúpida variedade das espécies e as manifestaçoes do mar e a expectativa do calor e a extensão dos campos e as putas das flores e das arvorezinhas cheias de passarinhos cantantes aos quais devíamos torcer o pescoço para nunca mais interferirem com as nossas feridas profundas. que se fodam. que se fodam os discursos de falsa preocupação dessa gente que sorri diante de nós mas que pensa que é assim mesmo, afinal, estamos velhos e temos de morrer, um primeiro e o outro depois e está tudo muito bem. sorriem, umas palmadinhas nas costas, devagar que é velhinho, e depois vão-se embora para casa a esquecerem as coisas mais aborrecidas dos dias. onde ficamos nós, os velhinhos, uma gelatina de carne a amargar como para lá dos prazos. que ódio tão profundo nos nasce. como incrivelmente nos nasce alguma coisa num tempo que já supúnhamos tão estéril."

valter hugo mãe, in 'a máquina de fazer espanhóis'

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

uma qualquer saudade


"sentir o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios."

valter hugo mãe, in 'a máquina de fazer espanhóis'

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Uma profunda amargura


"Silêncio!
Do silêncio faço um grito
O corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco.

De sombra a sombra
Há um Céu...tão recolhido...
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido.

Ao céu!
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais
Quando se vive atrás dela.

E eu,
A quem o sol esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora.

Solidão!
Que nem mesmo essa é inteira...
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura.

Ai, solidão
Quem fora escorpião
Ai! solidão
E se mordera a cabeça!

Adeus
Já fui para além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada a uma parede.

Adeus,
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai, como dói
A solidão quase loucura"

Amália Rodrigues
(para a Natasha, autora da foto. Há mortes que nos entram pela casa quando menos esperamos. São perdas estúpidas, inúteis e revoltantes. Hoje estou revoltado. Perdi uma recente mas boa amiga. Escolheu deixar-nos. E deixou-nos. Sem respostas. Impotentes. E muito mais vazios. Até sempre Natasha!)