quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Sono gelado

"Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite -
e deitar-me na terra; e ter uma cama de pedra branca e
um cobertor de estrelas; e não ouvir senão o rumor das ervas
que despontam de noite, e os passos diminutos dos insectos,
e o canto do vento nos ciprestes; e não ter medo das sombras,
nem das aves negras nos meus braços de mármore,
nem de te ter perdido - não ter medo de nada. Pudesse

eu fechar os olhos neste instante e esquecer-me de tudo -
das tuas mãos tão frias quando estendi as minhas nessa noite;
de não teres dito a única palavra que me faria salvar-te, mesmo
deixando que eu perguntasse tudo; de teres insultado a vida
e chamado pela morte para me mostrares que o teu corpo
já tinha desistido, que ias matar-te em mim e que era tarde
para eu pensar em devolver-te os dias que roubara. Pudesse

eu cair num sono gelado como o teu e deixar de sentir a dor,
a dor incomparável de te ver acordado em tudo o que escrevi -
porque foi pelo poema que me amaste, o poema foi sempre
o que valeu a pena (o mais eram os gestos que não cabiam
nas mãos, os morangos a que o verão obrigou); e pudesse

eu deixar de escrever nesta manhã, o dia treme na linha
dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,
mas ouço-te a respirar no meu poema."

Maria do Rosário Pedreira, in 'A Casa e o Cheiro dos Livros'

1 comentário:

nana disse...

as palavras desta senhora crescem em mim a velocidade vertiginosamente sentida....