domingo, 31 de dezembro de 2006

Sabor

Cruel é olhar para cada pessoa com quem tive uma relação e encará-la como um fracasso meu.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Vita Nuova


Quando vi aquela imagem no espelho, vi que não era eu. A barba cresceu muito rápido desde a última vez; eu já não consigo acreditar nas pessoas de quem gosto. Eu estou mal e não posso fazer nada senão dormir e esperar. Amanhã vou acordar cedo e tirar a barba, tirar também toda a desconfiança e o peso dos meus ombros. Eu quero ver-ME, ao menos uma vez mais.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Aparência

Eu gosto da minha aparência nos dias em que acordo assim; lábios cerrados, olhar baixo, sorriso forçado no canto da boca. Eu só não gosto de me sentir desta forma.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Ficções

É curioso ver que tu estás muito feliz e eu estou assim, desolado. E vens dizer-me que é para sempre? Desculpas! Mas eu vou conseguir arrancar-te da minha vida, não importa quantos pedaços de mim se percam pelo caminho, ou quantas vezes eu te queira de novo. Se é para alguém morrer na minha vida, prefiro que sejas tu. Mesmo assim é para sempre, ok?

quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

Morte de luz


"Perdi-me muitas vezes pelo mar, o ouvido cheio de flores recém cortadas, a língua cheia de amor e de agonia. Muitas vezes perdi-me pelo mar, como me perco no coração de alguns meninos. Não há noite em que, ao dar um beijo, não sinta o sorriso das pessoas sem rosto (...). Porque as rosas buscam na frente uma dura paisagem de osso e as mãos do homem não têm mais sentido senão imitar as raízes sob a terra. Como me perco no coração de alguns meninos, perdi-me muitas vezes pelo mar. Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma."
Frederico Garcia Llorca

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Morrer não dói


"O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo, indo embora. A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraíso que nos persegue, bonita e breve, como as borboletas que só vivem 24 horas. Morrer não dói."
Cazuza

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Às vezes





"Às vezes é no meio do silêncio que descubro o amor em teu olhar.
É uma pedra ou é um grito que nasce em qualquer lugar.
Às vezes é no meio de tanta gente que descubro afinal aquilo que sou.
Sou um grito ou sou uma pedra de um lugar onde não estou.

Às vezes sou o tempo que tarda em passar
e aquilo em que ninguém quer acreditar.
Às vezes sou também um sim alegre ou um triste não.

E troco a minha vida por um dia de ilusão...
e troco a minha vida por um dia de ilusão.

Às vezes é no meio do silêncio que descubro as palavras por dizer.
É uma pedra ou é um grito de um amor por acontecer.
Às vezes é no meio de tanta gente que descubro afinal para onde vou.
E esta pedra e este grito são a história daquilo que eu sou. "
Maria Guinot, in 'Silêncio é tanta gente'

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Espera


"Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça"
Mário Cesariny

Pensar em nada


"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o tejo não mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grande navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele."


Alberto Caeiro, in 'Guardador de Rebanhos'

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Cinzas


"Antes ser sob a terra abolição e cinza
Do que ser neste mundo rei de todas as sombras."

Sophia de Mello Breyner Andersen

sábado, 9 de dezembro de 2006

Fica...


"E aqueles olhos tão lindos afastaram-se dos meus..."
9 palavras de Pedro Homem de Mello e uma imagem do "E tudo o vento levou" para dizer que não quero que desistas...

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Fria claridade


"Em todos os meus sentidos, tive presságios de adeus..."

Pedro Homem de Mello, in 'Fria Claridade'

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Quem és...


"(...)

És
para meu desespero
Como as nuvens que andam altas
Todos os dias te espero
Todos os dias me faltas."


Linhares Barbosa, in "Os teus olhos são dois círios"

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Cansaço (Fado-Tango)





"Por trás do espelho quem está
De olhos fixados nos meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao deus-dará
Deixando os olhos nos meus.
Quem dorme na minha cama,
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama,
E lá de longe me chama
Misturada nos meus sonhos.
Tudo o que faço ou não faço,
Outros fizeram assim
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim."

Luís de Macedo, por Cristina Branco in "Live"

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Deixai-me

"Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio"

Sophia de Mello Breyner Adrensen

sábado, 25 de novembro de 2006

Pausa



Vou ali, já venho...

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Horas


"Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e mais difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais."
Michael Cunningham, in 'As Horas'

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Certezas


“Não se pode ter muitos amigos e mesmo os poucos amigos que se tem, não se podem ter tanto como nos apetecia. Para não passar mal, aprende-se a economia da amizade, ciência um bocado triste e um bocado simples que consiste em ampliar os gestos e os momentos de comunidade para compensar os grandes desertos de silêncio e de separação que são normais. Como por exempo? Como, por exemplo, abrir mesmo os braços e dar mesmo um abraço. Dizer mesmo na cara de alguém «Tu és um grande amigo» e ser mesmo verdade. Acho que não é de aproveitar todos os momentos como se fossem os únicos, porque isso seria uma forma de paixão, mas antes estarmos com os amigos, nos poucos momentos que se têm, como se nunca nos tivéssemos separado.
A amizade é uma condição que nunca pode ser excepcional. Tem de ser habitual e eterna e previsível. E a economia dela nota-se mais quando reparamos que, sempre que não estamos com os nossos amigos, estamos sempre a falar deles. É bom dizer bem de um amigo, sem que ele venha a saber que dissemos. E ter a certeza que ele faz o mesmo, pensando que nós não sabemos.
A amizade vale mais que a razão, o senso comum, o espírito crítico e tudo o mais que tantas vezes justifica a conversação, o convívio e a traição. A amizade tem de ser uma coisa à parte, onde a razão não conta. Ter um amigo é como ter uma certeza. Num mundo onde certezas, como é óbvio, não há.”

Miguel Esteves Cardoso, inOs Amigos e os Amigalhaços

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Apesar de mim


"O que costumava amar, já não amo
minto: amo, mas amo menos
ainda assim continuo a mentir:
amo, mas mais envergonhadamente, mais tristemente
agora é que disse a verdade.
De facto, é assim: amo, mas desejaria não amar o que amo, desejaria odiá-lo
amo todavia, mas sem querer, mas coagido, mas triste e em pranto.
E, mísero, em mim mesmo experimento aquele famosíssimo dito:
Odiarei se puder
se não, amarei apesar de mim."


obrigado pela descoberta e pela partilha, Miguel

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

amor


"amor
o amor perdido
o amor de ti e de mim
O amor que só aparece
quando o amor está no fim"

José Manuel dos Santos, in 'O Livro dos Registos'

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Flor da Pele





"Ando tão à flor da pele,
que qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele,
que teu olhar, flor na janela, me faz morrer
Ando tão à flor da pele,
que meu desejo se confunde com a vontade de ... não ser
Ando tão à flor da pele,
que a minha pele tem o fogo do juízo final"
Flor da Pele de Zeca Baleiro, in 'Por Onde Andará Stephen Fry?'

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Ruas


"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
— a delimitar a tua altura
e bebo a água
e sorvo o ar que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco"

Mario Cesariny

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Nada

"Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minha alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...
-Onde existo que não existo em mim?

..........................................................
Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas
-Tudo outro espasmo que principio ou fim..."


Mário de Sá Carneiro, in 'Obra Poética Completa'

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Shhh...


Há dias assim, em que só o silêncio me convém...

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Quando*






Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,

E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar'
por Katia Guerreiro, in 'Tudo ou Nada'
.
.
*Se fosse viva, Sophia faria hoje 87 anos.

domingo, 5 de novembro de 2006

Mentira


"De mim não falo mais :não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ... - Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais,todos mentiram."

Jorge de Sena, in 'Genesis'

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Agonia


"(...) Mas na realidade não sei ainda se quero que te vás ou fiques, é tão difícil saber. Porque num caso ou noutro agonizo. Mas como sabes há um outro de nós que escolhe quando é de ser, mesmo contra o que julgamos querer. Assim, hoje ao acordar fiquei aterrado ao ver que de noite me rolara para o meio da cama. Deitei-me como sempre do meu lado, para deixar livre o teu no caso de resolveres voltar e te deitares nele. Mas o sono levou-me para o sítio que é o bom e fica à minha esquerda. Porque é que eu me passei para o meio da cama? e só acho uma como resposta o teres morrido para sempre. E fiquei horrorizado da minha libertação. Não vás ainda. Volta de novo. Vou deitar-me outra vez no meu lugar e deixar o teu à espera. Vem de noite sem eu dar conta e acordar contigo ainda no teu sono e tocar-te e seres tu. (...)"
Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Último Adeus




"Talvez por não saber falar de cor, imaginei. Talvez por não saber o que será melhor, aproximei. "O meu corpo é o teu corpo, o desejo entregue a nós". Sei lá eu o que queres dizer... Despedir-me de ti, adeus um dia voltarei a ser feliz. Talvez por não saber falar de cor, aproximei. Triste é o virar as costas, o último adeus sabe Deus o que quero dizer. Obrigado por saberes cuidar de mim, tratar de mim, olhar para mim, escutar quem sou... E se ao menos tudo fosse igual a ti. Eu já não sei se sei o que é sentir o teu amor, já não sei se sei o que é sentir. Se por falar falei, pensei que se falasse era fácil de entender... É o amor que chega ao fim, um final assim assim é mais fácil de entender..."

The Gift, in "Fácil de Entender"

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Tristeza



"(...) E é curioso como te ouço e te vejo sempre igual. O meu nome. É o que quase sempre te ouço. O chamamento de mim mas como de longe, mesmo se for ao pé. Como se num pedido de socorro, chamamento leve de sofrimento. E a tua face. Ou o teu andar não sei por onde. Face doce flutua no incerto de ti. E os olhos, só olhar. Sempre séria e triste, devias ter o que te magoasse desde os começos da vida ou de mais longe(...)."
Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Facto


"Nós não sabemos aquilo que queremos e, no entanto, somos responsáveis por aquilo que somos - este é o facto."
Jean-Paul Sartre

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Sagrado


"(...) Mas do que eu mais gosto é de quando me acompanhas em passeio. Às vezes saio só, mas tu vens ter comigo ao caminho. Ou de relembrar-te outrora quando te via passar. Havia em ti uma sacralidade intocável, na tua anca fina ondeando por entre outras raparigas. E essas jovens eu sentia que as podia tocar sem estremecer, sem uma grande distância até elas. Mas a ti envolvia-te um halo numinoso e eu sentia que num gesto meu ia a tua profanação sacrílega, qualquer coisa assim como creio já ter dito. Violar o sagrado de ti, que odioso prazer na minha violência. Transpor a enorme distância que ia da minha condição terrestre à tua sacralidade e para lá dela ao teu corpo. Via-te às vezes com outras mulheres e sentia bem que não eras da sua condição. Porque elas eram materiais concretas manipuláveis e tu eras de uma outra ordem de se ser. Como uma deusa que estivesse de passagem, jamais te falei assim porque tu ignoravas o que havia em ti de transcendência e querias que não houvesse e eu fosse mais quotidiano e talvez que te magoasse. Querias ser real para mim e que eu praticasse a tua realidade. Talvez que se te batesse, palavra, às vezes penso, no desespero de relembrar quanto te amei para além de ti e quanto tu querias que não. (...)"

Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

domingo, 29 de outubro de 2006

Fado Perdição





"Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar
A dança verde das ondas
Soluça no meu olhar
Tentei esquecer as palavras
Nunca ditas entre nós
Mas pairam sobre o silencio
Nas margens da nossa voz
Tentei esquecer os teus olhos
Que não sabem ler nos meus
Mas neles nasce a alvorada
Que amanhece a terra e os céus
Tentei esquecer o teu nome
Arrancá-lo ao pensamento
Mas regressa a todo o instante
Entrelaçado no vento
Tentei ver a minha imagem
Mas foi a tua que vi
No meu espelho, porque trago
Os olhos rasos de ti
Este amor não é um rio
Tem abismos como o mar
E o manto negro das ondas
Cobre-me de negro o olhar
Este amor não é um rio
Tem a vastidão do mar"

Cristina Branco, in 'Murmúrios'

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Espera


"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes cegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo os meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Estarei contigo


"Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços! Te enrustiste em minha vida; e cada hora que passa é mais porque te amar. A hora derrama o seu óleo de amor, em mim, amada... E sabes de uma coisa? Cada vez que o sofrimento vem, essa saudade de estar perto, se longe, ou estar mais perto se perto, - que é que eu sei! Essa agonia de viver fraco, o peito extravasado, o mel correndo; essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso que é bem capaz de confundir o espírito de um homem - nada disso tem importância quando tu chegas com essa charla antiga, esse contentamento, essa harmonia, esse corpo! E me dizes essas coisas que me dão essa força, essa coragem, esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice, meu verso, meu silêncio, minha música! Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada, sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... Coisa incompreensível! A existência sem ti é como olhar para um relógio só com o ponteiro dos minutos. Tu és a hora, és o que dá sentido e direção ao tempo, minha amiga mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada! Milhões amada! Ah! criatura! quem poderia pensar que Orfeu: Orfeu cujo violão é a vida da cidade e cuja fala, como o vento à flor, despetala as mulheres - que ele, Orfeu, ficasse assim rendido aos teus encantos! Mulata, pele escura, dente branco, vai teu caminho que eu vou te seguindo no pensamento e aqui me deixo rente quando voltares, pela lua cheia, para os braços sem fim do teu amigo! Vai tua vida, pássaro contente! Vai tua vida que eu estarei contigo!"
"Orfeu da Conceição", de Vinicius de Moraes
in "Que Falta Você Me Faz" por Maria Bethânia

terça-feira, 24 de outubro de 2006

O segredo do futuro


"El secreto de la felicidad, o, por lo menos, de la tranquilidad, es saber separar el sexo del amor. Y, si es posible, eliminar el amor romántico de tu vida, que es el que hace sufrir. Así se vive más tranquilo y se goza más, te aseguro."
Mario Vargas Llosa, in 'Travesuras de la niña mala'
(Roubado
daqui)

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Não, obrigado!

Intemporal


"Tenho saudades tuas.
Sempre me achaste um fraco. E de facto ao pé de ti eu era vulnerável. Quebraste as barreiras do meu isolamento e com isso destruíste-me as defesas. Na altura, disseste, era o preço a pagar pelo teu amor. Nunca fomos felizes e ainda assim, a tua morte acabou por tornar-se na forma de me pertenceres para sempre. Porque me apropriei da tua memória e agora sinto que só a mim me pertences. É irónico, não é? Enquanto viveste nunca conseguimos realmente pertencer um ao outro. E agora já não há nada que te arranque de mim porque a tua existência tornou-se intemporal. Há noites em que sei perfeitamente que estás ao meu lado, porque sinto o teu calor, porque ouço o teu respirar e até consigo tocar-te. Imagino-me a percorrer o teu corpo com as minhas mãos, com um toque suave que te causa arrepio. E tu a deixares-te amar de um modo confortável e descomprometido, como nunca fizeste."
Pedro Rapoula, in 'Iniciação à Tristeza'

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Cansaço


"La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme la guérison pour le malade,
Comme de sortir après avoir souffert.

La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le parfum de la myrrhe,
Comme de s'asseoir sous un dais un jour où souffle la brise.
La mort est à mes yeux aujourd'hui,
Comme le parfum du lotus,
Comme de s'asseoir sur la rive du pays de l'ivresse.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le chemin de la pluie battante,
Comme le retour du soldat à la maison.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme une éclaircie dans le ciel,
Comme de comprendre une énigme.
La mort est à mes yeux aujourd'hui
Comme le désir d'un homme de revoir sa maison
Après de longues années de captivité."



texto popular do antigo Egipto, da XIIª dinastia
(1990 AC, aproximadamente)

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Burning Heart


“He woke her then, trembling and obedient she ate that burning heart out of his hand. Weeping, I saw him then depart from me.
Could he daily feel a stab of hunger for her and find nourishment in the very sight of her? I think so. Would she see through the bars of his plight and ache for him?”
Dante Alighieri, in 'La Vita Nuova'

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Infância


"(...) Vou contar-te uma história. A minha mãe sempre trabalhou muito, fora de casa. Chegava sempre tarde e eu já estava deitado. Naqueles momentos após eu me deitar, ficava muito direito e quieto na cama, esperando que a porta de casa abrisse. Era terrível aquela angústia, de não querer adormecer sem ouvir o barulho da chave que significava que provavelmente a mãe iria ao quarto dar-me um beijo de boa noite. Acabava sempre por adormecer, e no meio da revolta da manhã seguinte, ficava em mim uma sensação de vazio que me deixava inseguro e muito só. Pior que isso era estar acordado e perceber que os passos dela se encaminhavam para todos os lados menos para o meu quarto. Aí sim, sofria a sério. Sentia algo a quebrar-se por dentro e penso, agora, que foi assim que fui perdendo a noção de ser criança. Conto-te isto porque nessa noite, todas essas imagens e sensações da minha infância voltaram a percorrer o meu cérebro. Acho que por instantes voltei a ser a criança solitária que fui. Desta vez não chorei, desta vez limitei-me a apanhar os pedacinhos de mim."
Pedro Rapoula, in 'Iniciação à Tristeza'

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Fragilidade


"Como poderia eu ter imaginação para te reconstituir na sólida delicadeza da tua fragilidade? (...) O amor e a morte inserem-se um no outro, deves saber. Mas eu sobrevivi e isso é uma condenação. Penso-te e o teu esplendor renasce-me no meu pensar e a minha idade retrai-se quando me apareces. E a eternidade em que se vive, mesmo se a velhice é real, restabelece-me igual a ti que nunca envelheceste. E não me perguntes porque te escrevo se tudo é em vão. Mas há o meu desejo de te fixar na palavra escrita que te diz, para ficares aí com o milagre que puder. É Primavera e tudo é nítido no seu ser real. Os campos cobrem-se de relva, as flores despertam da sua hibernação, passa na aragem o perfume da vida, de tudo o que é vivo no mundo. A luz nítida demora-se no cimo dos montes e eu olho-a na sua agonia para um pouco existir no que te digo. Ou no teu nome de que nao gostava muito e agora renasce em sonoridade branda quando o penso ou o escrevo ou o digo em voz alta."
Virgilio Ferreira, in 'Para Sempre'

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Realista


"Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel, às promessas interiores. Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome , ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever."
Bernardo Soares, in 'Livro do Desassossego'

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Inocência


"Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto. O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência."

Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Para ti


"Não se pode defender o que não se ama, e, não se pode amar o que não se conhece..."

Autor desconhecido

Crepúsculo


"Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo."

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

domingo, 8 de outubro de 2006

Infinito da tua perfeição


"... Vou-te amar intensamente como nunca. Amei-te com avidez precipitação impreparação juvenil. Havia uma distância enorme de permeio e eu tinha que a preencher. Amei-te depois com luxúria como se diz no catecismo. E amei-te como cumprimento de um horário semanal. (...) Vou pôr na rua da lembrança tudo o que não for a tua nudez, a amargura vexame sofrimento. Mesmo as alegrias que não são para aqui. Mesmo os filhos que também não - a vida inteira que passou. Preciso tanto de te amar - e como te vou amar? Não sei. Vou-te amar no infinito da tua perfeição."

Vergílio Ferreira, in 'Em nome da terra'

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Partida



"A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida."

Sophia de Mello Breyner, in 'Poesias'

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Outro


"Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço."

Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia'

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Pedra Escura


"Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto os meus dias
quebrados na cintura."


Eugénio de Andrade, in "Palavras interditas até amanhã"

Segredos


"Meu amor, porque me prendes?
Meu amor, tu não entendes,
Eu nasci para ser gaivota.
Meu amor, não desesperes,
Meu amor, quando me queres
Fico sem rumo e sem rota.

Meu amor, eu tenho medo
De te contar o segredo
Que trago dentro de mim.
Sou como as ondas do mar,
Ninguém as sabe agarrar,
Meu amor, eu sou assim.

Fui amada, fui negada,
Fugi, fui encontrada,
Sou um grito de revolta.
Mesmo assim, porque te prendes?
Foge de mim, não entendes?
Eu nasci para ser gaivota.
"
Paulo Valentim por Katia Guerreiro*, in "Nas mãos do Fado"
* Por ocasião do Dia Mundial da Música