quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Que a solidão não seja deserta


"(...) importa-me que a solidão não seja deserta, por isso fico sozinho com muitos amigos cada vez mais imaginários: a amália, a patty waters, o caetano veloso, a lisa gerrard, a diamanda galás, a billie holiday, o devendra banhart, o bosch, o william blake, o conde de lautréamont, o lars von trier, o oscar wilde, o william shakespeare, o camões, o jorge melícias, a josefa de óbidos, o mozart, o da vinci, o josé saramago, a vashti bunyan, a baby dee, o cartola, o david tibet, o ruy belo, o vitorino nemésio, a lisa santos silva, david sylvian, o samuel beckett, o rui lage, o luís miguel nava, o al berto, o jean genet, o chico buarque, o antónio lobo antunes, o ingmar bergman, o júlio saul dias, o hitchcock, o david lynch, a michelle pfeiffer, o antonio gamoneda, a nina simone, a ella fitzgerald, o mário de carvalho, o raul perez, o loius armstrong, o chet baker, o mário cláudio, o artur do cruzeiro seixas, o mário de cesariny, o lee ranaldo, a kim gordon, o mahler, o joão peste, o joão gilberto, a elizabeth frazer, o william burroughs, o franz kafka, a isabel de sá, o daniel faria, o eça de queirós, o manuel de oliveira, a agustina, o federico fellini, o pier paolo pasolini, o vítor rios, o ferreira gullar, o bach, o vergílio ferreira, a chan marshall, o rostropovich, o gould, o arvo part, a adília lopes, o josé régio, o baudelaire, o t. s. elliot, o umberto eco, o ítalo calvino, a lula pena. etc etc etc etc. (...)
se não fosse a escrita só a música me ganharia. ou a pintura. ou o cinema. o teatro. ou um projecto incrível em áfrica ou outro lugar qualquer onde pudesse salvar uma vida e entender porque sempre acreditei que entre tudo os outros são sempre o mais importante do mundo. como se deus existisse e quisesse muito que eu acreditasse nele."


Valter Hugo Mãe, in 'Autobiografia'

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Como se as coisas boas também nos dessem medo

"(...) lembro-me de estar com a minha mãe e sair do carro com ela. havia um espaço verde e um pequeno recreio infantil um pouco adiante. estávamos em lisboa para assuntos do meu pai na capital. fizéramos a viagem na nacional antiga, durante seis horas, talvez mais, e não sabíamos de nada porque a rádio esteve sempre desligada. lembro-me de haver uma luz clara no recreio. não tinha frio. um menino disse-me, eu cá vou para o escorrega, e eu nunca mais esqueci essa sua expressão. dizia eu cá para tudo. parecia-me estranho. e menos igual vira um menino tão claro que me confunde ainda hoje a memória, não sei se em verdade o dia estava luminoso, se era o cabelo dele que o acendia em nosso redor.
em angola, dissera-me anos mais tarde a minha professora, os meninos são pretos como a noite. eu, nessa altura, não me lembrava de nada. nem dos meninos da noite nem do menino do dia vinte e cinco de abril de setenta e quatro. acho que só aos oito ou nove anos me lembrei do sucedido. comprovei a história com os meus pais. apareceu-me como uma encarnação passada e mediu a minha vida com outra extensão. na minha meninice livre, permitida numa vila pequena como era paços de ferreira, abria-se um fosso no tempo e também lembrei como corremos, eu e a minha mãe, aos gritos do meu pai aflito sob os ruídos dos tiros. corríamos de cabeça baixa que a minha mãe era assim que fazia, e eu sei que ainda corri um pouco e depois fui tomado no colo. não nos deixámos parados dentro do carro. o meu pai imediato nos levou dali para fora. a capital estava a ser revolucionada, e ainda que as pessoas confusas achassem que era para o bem, os tiros ouviam-se e pareciam tão rentes como coisas do mal.
eu expliquei à minha professora que não me lembrava dos meninos de áfrica, mas que me lembrara de estranhar os meninos mais claros de portugal. na altura ainda lhe disse algo sobre uma menina da classe. tinha os cabelos muito loiros e alguém lhe chamava de francesa. para a frança emigravam as pessoas todas daquela zona, por isso, o estrangeiro para nós era paris.
no liceu fiz uma qualquer redacção sobre o vinte e cinco de abril, não sei bem que coisa disse – a nota não foi muito boa – sei o que quis dizer. no dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. conheci e aceitei a diferença. que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde. haveria de entender, vez por todas, que não desperdiçaria nunca coisa tão cara que um só dia me trouxe. fiquei inchado diante da professora a sentir-me bom aluno.
assim, vivi em paços de ferreira, onde fiz a escola primária, e lembro da cidade – uma vila muito pequena, então – como um lugar pacífico onde se brincava na rua sem medos, entre riachos e mato, terras que aluíam e caminhos de paralelo a prejudicar as rodas das nossas bicicletas. a escola onde andei foi deitada abaixo em favor de um prédio horrível. a casa onde vivi – a casa da dona alice, devota da santa sílvia cardoso – esteve em ruínas muito tempo a albergar toxicodependentes. agora, disse-me o senhor luís magalhães, meu amigo de freamunde, foi deitada abaixo. fui verificar e tenho uma só fotografia onde se vêm as suas paredes rosa. à frente dela estou eu, com sete anos talvez, uns calções brancos, cara de miúdo bem comportado, muitos sonhos a nascer. no nosso quintal imenso apareceram prédios. os meus amigos de infância, com quem perdi o contacto, são estofadores de móveis, diabéticos, casados, gordos, donos de fábricas e distantes.
era uma casa imensa para mim, dividida ao meio por um longo corredor, como uma casa com risca ao meio, e eu podia ir da sala ao meu quarto de bicicleta. era cor de rosa velho e tinha heras agarradas aos muros, muitas, assim a tapar as vistas e a criar uma privacidade que nos possibilitava, aos miúdos, acampar no quintal pelo verão, cheios de medo que viesse um bicho qualquer que nos fizesse viver uma aventura maravilhosa. vivíamos assim, como se as coisas boas também nos dessem medo, de tanta ansiedade por elas."


Valter Hugo Mãe, in 'Autobiografia'

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O triste deste amor em fim de tarde

"Amar como te amei ninguém mais ama
E tanto que nem sei se vale a pena
Amar e sempre amar quem mais clama
O nosso desamor feito dilema

Um dar e não saber se quem recebe
É cego ou não quer ver toda a saudade
Que existe e que persiste e não percebe
O triste deste amor em fim de tarde

Ninguém mais do que tu foi tão verdade
Das coisas que nos dão razão à vida
Prisão que ontem foi de liberdade
E hoje se transforma em chaga viva

Amar como te amei ninguém mais ama
De tanto que nem sei se vale a pena
manter nesta paixão acesa a chama
ou apagar num sopro este dilema"

Rui Veloso, por Marisa Pinto (Donna Maria) in 'Música para ser Humano'

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Those failed expectations…

"So when the fight is over,
And the storm is through,
Now will you pick another?
What will you get into?
So you stand in the corner,
With those boxing gloves on you,
You’re old, scared and lonely,
Yeah we’ve all been there too… uh uh
We’ve been all there too…
Kiss me, oh kiss me,
If that can make it right.
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you’re through.
Cause I just might, take them home with me.
And the cracks in the pavement,
Yeah we’ve all fell there before,
And bones built into skeleton,
We’ve all been through that door.
Kiss me, oh kiss me,
If that can make it right.
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you’re through.
Cause I just might…
Kiss me, oh kiss me,
Will that make things right ?
Try me, find me,
Just throw them on me…
Those failed expectations…
Floods and afflictions you’re through.
Cause I just might…
I just might, take you home.
Kiss me, kiss me,
We’ve all been there too,
Kiss me, kiss me
We have all been there too,
Kiss me, kiss me
We’ve all been there too,
Kiss me, kiss me
So kiss me…"


David Fonseca, in 'Dreams in Colour'

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Os teus olhos foram esperança

"Pelo céu às cavalitas
Escondi nos teus caracóis
A estrela mais bonita que eu já vi
Eu cresci com o encanto
De ser caçador de sóis
Eu já corri tanto, tanto, para ti
Fui um príncipe encantado
Montado nos teus joelhos
Um eterno enamorado a valer
Lancelote de algibeira
Mas segui os teus conselhos
Pra voltar à tua beira
E ser o que eu quiser
Os teus olhos foram esperança
Os meus olhos girassóis
Fomos onde a vista alcança
Da nossa janela
Já deixei de ser criança
E tu dormes à lareira
Ainda sinto a minha estrela
Nos teus caracóis"

Ala dos Namorados, in 'Mentiroso Normal'

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Fechar os olhos

"(...) aqui estou na praia que veêm, de limonada na mão, refastelado e indiferente à passagem das horas, que aqui se escoam com uma majestade de paraíso. Se pudesse, suspendia o relógio, queimava todas as pontes e deixava-me ao abandono dos trópicos, afogado pela natureza. Aqui não falo. Não há com quem possa falar. Aqui não leio. Um livro soa a falso, tamanha é a magreza do estro dos mais inspirados poetas perante a imponência do meio. Aqui, se medito, perco-me. Prefiro fechar os olhos, sentir a brisa e o cantar das ondas suaves que à praia vêm morrer. Aqui, Liberdade, trato-te pelo nome."
Miguel Castelo-Branco, in 'Combustões'

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

É o amor

Superfície da minha própria vida

"Eu sonho. Sonho que flutuo na superfície da minha própria vida, enquanto a vejo desenrolar-se. Observo-a. Sou o estranho a olhar cá para dentro. Olhem só para eles. Podem rir-se e brincar. É-lhes tão fácil. Mesmo que eu não seja um deles, mesmo que eu possa ser um verdadeiro monstro às vezes. (...)
Não há segredos na vida. Apenas verdades escondidas que estão abaixo da superfície."

Clyde Phillips, in 'Dexter'

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Amor é amor a nada


"Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira,
no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo
porque não amo bastante
ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga
nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor."

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A sensação de arrepio

"Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea —
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem —
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração."


Álvaro de Campos

(A imagem é de São Paulo, onde me encontro. Não me canso desta cidade! Penso que já tive oportunidade de escrever o quanto gosto de aqui estar. Apesar de ser um mundo, sinto-me sempre em casa quando chego...)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Escuridão da noite


"Não há maior comédia que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou zombar do mundo, não tenho mais que olhar para mim.
Eis-me aqui, na fortaleza da solidão, em desterro de silêncio (...), carecido de tempo para responder a tão novas e dilatadas matérias, cercado de professias e prognósticos, e para mais febril e com receio de que a febre se faça ou seja habitual e que a debilidade do sujeito fique incapaz de outros remédios.
Ergo meus olhos ao céu e rezo para que a escuridão da noite se deixe rasgar pela faísca de uma estrela."


Padre António Vieira, in Cartas
(400 anos passados do seu nascimento)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

E agora menos que nem vida tenho

"Senhor António:
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.

Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
(…)
- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.

Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou a chorar.

Maria José“


Fernando Pessoa
(Pessoa teve um único heterónimo feminino. Chamou-se Maria José e em seu nome escreveu um único texto: esta carta.)