quinta-feira, 31 de maio de 2007

De Amicitia

"(...) Tinha uma paixão secundária, mas não menos importante, embora possivelmente não tão egoísta e seguramente menos solitária. Cultivava os amigos, não este nem aquele em especial, mas os amigos, como entes que corporizavam uma categoria sobre a qual era capaz de discorrer horas a fio: a amizade. (...) Citava Cícero mas não sabia mais do De Amicitia que uma frase (...) que, na sua imprecisa recordação, dizia mais mais ou menos assim: «De todas as virtudes humanas, nenhuma é tão rara e tão próxima do coração do homem como a amizade.» Praticava com zelo a disciplina, como ele a entendia: não perguntava nada, não pedia nada, disponibilizava-se para tudo o que os amigos precisassem. E seguia as necessidades dos outros com uma bulimia do pormenor que ficaria bem a um detective, intuindo-lhes desejos, adivinhando-lhes projectos, antecipando gestos e afectos. Era um verdadeiro amigo, diziam os amigos; ele, modestamente, achava-se apenas um homem comum.(...)."
António Mega Ferreira, in 'A Expressão dos Afectos'

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Alma inquieta

"No berço que a ilha encerra
Bebo as rimas deste canto
No mar alto desta terra
Nada a razão do meu pranto.

Mas no terreiro da vida
O jantar serve de ceia
E mesmo a dor mais sentida
Dá lugar à sapateia.

Refrão
Ó meu bem ó chamarrita
Meu alento e vai e vem
Vou embarcar nesta dança
Sapateia, ó meu bem.

Se a sapateia não der
P'ra acalmar minha alma inquieta
Estou pró que der e vier
Nas voltas da chamarrita.

Chamarrita Sapateia
Eu quero é contradizer
No alento desta bruma
Que ás vezes me que vencer."

'Chamateia' de Luís Bettencourt e António Melo e Sousa
.
A versão que é cantada não é a que eu queria. Ouvi esta música pela primeira vez há muito pouco tempo, no Dia Mudial da Música, em Outubro passado, num fim de semana extraordinário que passei nos Açores. Na companhia da minha irmã e de mais alguns (excelentes) amigos tive a oportunidade de ver e ouvir a maior fadista portuguesa viva interpretar este tema tão sentido da música popular portuguesa. A minha querida Katia Guerreiro fez história naquela noite do Teatro Micaelense, em Ponta Delgada. Foi, de resto, a primeira vez que voltei àquela terra onde vivemos quando éramos crianças e a nossa amizade começou. Ela ficou por lá até ser grande e eu vim ainda pequeno. Hoje ela é a única pessoa que percebe o peso da bruma na minha alma inquieta. Os Açores marcam quem lá vive e ainda que eu tenha saído de lá com apenas 4 anos continuo a sentir o "alento desta bruma Que ás vezes me que vencer", como canta a música. Porque é uma música de saudade e porque hoje me sinto assim, nostálgico, fica a lembrança.

sábado, 26 de maio de 2007

Still nights


"Ideal voices we have greatly loved,
of those that death has taken, or of those
that are, for us, lost, even as are the dead.
At times we hear them talking in our dreams;
at times in thought they echo through the brain.
And, with the sound of them, awhile recur
sounds from the first poetry of our lives, —
like music, on still nights, far off, that wanes."
C. P. Cavafy

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Sentido

"Porque estou tão saudoso de ti. Ou não de ti, talvez, mas de um tempo em que tudo em ti se centralizava. Ou não do tempo mas de quanto foi a minha vida e eu procuro numa palavra que viesse desde então até mim e não encontro. (...)
És o que no fim de contas me lembra só. Como se toda a vida se reunisse nela e nela se iluminasse e tivesse sentido."


Vergílio Ferreira in 'Para Sempre'

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Do outro lado

"Que há atrás dessa porta?
Não chames, não perguntes, ninguém responderá,
nada pode abri-la,
nem a gazua da curiosidade
nem a pequena chave da razão
nem o martelo da impaciência.
Não fales, não perguntes,
aproxima-te, encosta a orelha:
- não ouves a respiração?
Lá do outro lado,
como tu alguém pergunta:
- que há atrás dessa porta?"


quarta-feira, 16 de maio de 2007

Espaço negro

"Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornas­se um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdi­çados antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás. E não fui. (...)
Abro e fecho a porta da rua. A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço negro que as separa."

José Luís Peixoto in 'Nenhum Olhar'

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Nunca possuir

"Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!
Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção p'ra me afundar no lodo.
Não sou amigo de ninguém. P'ra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...
Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...
Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...
De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo."
Mário de Sá Carneiro in 'No lado esquerdo da alma'

domingo, 13 de maio de 2007

Avec le temps




"Avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie le visage et l'on oublie la voix
le cœur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien
avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
l'autre qu'on devinait au détour d'un regard
entre les mots, entre les lignes et sous le fard
d'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
avec le temps tout s'évanouit
avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules
à la gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort
le samedi soir quand la tendresse s'en va tout' seule
avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
l'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens
avec le temps, va, tout va bien
avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie les passions et l'on oublie les voix
qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid
avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
et l'on se sent floué par les années perdues
- alors vraiment
avec le temps on n'aime plus"

Léo Ferré, 1971

sábado, 12 de maio de 2007

Almost literature

- It's ok. 't was just another stupid joke... And I was sleeping on the couch, with a movie running. Thanks!
- Miss you...
- Not more than I do...
- And why all this...?
- I'm looking for seduction, desire and true love. You were quite clear about what you'd have to give. So I just came back to reality. Easy?
- Seduction was always there. Desire too... True love comes with time... Well you're the master... Maybe you're right being so defensive... Miss you anyway...
- I didn't say anything had to be there right away, you just need to feel things available to come. And one action makes the other react. We're never sure, off course. That's life. I decided to live it strong: I need to feel things the way I have them to give. Maybe that's a problem...
- Maybe I have to say sorry... But I like you and I miss you anyway...
- If you feel it, say it. All I ever need is truth or sincerity.
- Did you ever feel that I wasn't true to you?
- Maybe yes, I do. I felt too much poetry and less passion for reality. They're both roles to play, the way I feel them and the way I believe them.
- I'm sorry if I've disappointed you. I care too much for you... I really do...
- And maybe I wanted you too much. That's the way things are. At one point you have to carry them and keep on driving with your goals. Even if it hurts...
- There is something stupid with timings in life... Sometimes you meet a person that seems so right but you meet him on the wrong time... Why is that? To test us? To make us feel bad?
- That's just because it's not the person. I believe. But, who am I?
- You are who you are and I am who I am... And time is what it is... And missing you hurts. And you stepped out of the game. Lack of courage or fear of getting hurt? Am I that bad? Was the set so scary? What have we done to our joy of laughing together...? We could/should have done love and not war...
- I never gave you the right to put me on a stand by shelf. I'm sorry if you have timing problems. To laugh together is better than an orchestra: is to be there completely and give yourself. You feel stupid if you realise you're laughing alone. I've had too much of that. This is not easy for me, really.
- Ok... (silence)
- Maybe one day, if you feel it. Maybe I'm still here falling asleep with movies and having casual flirts to find you. Maybe not. That's the timing problem. I really like you. So maybe I will. Have fun.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Desespero

"As God is my witness, as God is my witness they're not going to lick me. I'm going to live through this and when it's all over, I'll never be hungry again. No, nor any of my folk. If I have to lie, steal, cheat or kill. As God is my witness, I'll never be hungry again."

Margaret Mitchell in 'E tudo o vento levou'

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Puro irreal

"Que é que eu amo em ti? Não é o teu corpo, não é o teu espírito, mas a transfiguração de um pelo outro, a transcendência da tua carne frágil, a abordagem de quem tu és no mais profundo de ti; na posse compacta de toda tu, no espasmo de um punho cerrado - dorme. Não posso dormir, não quero. Como perder esta hora máxima de ser, de tocar toda a realidade secreta, drasticamente separada, segregada da minha ânsia em agonia? Porque tu eras para mim o puro irreal e imaginário, o subtil incorpóreo, a pura iluminação sem consistência, a aparência do não-ser, a terrível beleza intocável, a graça aérea imaterial. E agora estavas ao pé de mim, e eu estendo a mão devagar para condensar em realidade a tua imaterialização. Como dormir e perder-te e acordar depois - tu não estavas aqui e ser tudo fantástico de impossível?..."

Vergílio Ferreira in 'Para Sempre'

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Tout peut s'oublier

"Ne me quitte pas, Il faut oublier, Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit déjà Oublier le temps Des malentendus Et le temps perdu
A savoir comment Oublier ces heures Qui tuaient parfois A coups de pourquoi Le cœur du bonheur
Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas
Moi je t'offrirai Des perles de pluie Venues de pays Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre Jusqu'après ma mort Pour couvrir ton corps D'or et de lumière
Je ferai un domaine Où l'amour sera roi Où l'amour sera loi Où tu seras reine
Ne me quitte pas Ne me quitte pas
Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas
Je t'inventerai Des mots insensés Que tu comprendras
Je te parlerai De ces amants-là Qui ont vu deux fois Leurs cœurs s'embraser
Je te raconterai L'histoire de ce roi Mort de n'avoir pas Pu te rencontrer
Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas
On a vu souvent Rejaillir le feu D'un ancien volcan Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il Des terres brûlées Donnant plus de blé Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir Pour qu'un ciel flamboie Le rouge et le noir Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas
Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer Je ne vais plus parler
Je me cacherai là A te regarder Danser et sourire Et à t'écouter Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir L'ombre de ton ombre L'ombre de ta main L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas Ne me quitte pas."

Jacques Brel, 1959

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Momento

"Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos, e o meu destino apareceu-me na alma como um precipício. A minha vida passada misturou-se com a futura, e houve no meio um ruído do salão de fumo, onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado na sensação das ondas! Ah, embalado na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã, de pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas, de não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali, em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse. Ah, afundado num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono, irrequieto tão sossegadamente, tão análogo de repente à criança que fui outrora quando brincava na quinta e não sabia álgebra, nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio por esse momento sem importância nenhuma na minha vida. Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos — Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma, aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender. E havia luar e mar e a solidão (...)."

Álvaro de Campos in 'Poesia'

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Falta

"De vez em quando a eternidade sai do teu interior e a contingência substitui-a com o seu pânico. São os amigos e conhecidos que vão desaparecendo e deixam um vazio irrespirável. Não é a sua 'falta' que falta, é o desmentido de que tu não morres."


Vergílio Ferreira in 'Pensar'

terça-feira, 1 de maio de 2007

My face is not sad, but inside, I am sad

"In any other world
You could tell the difference
And let it all unfurl
Into broken remnants
Smile like you mean it
And let yourself let go
Cos it's all in the hands of a bitter, bitter man
Say goodbye to the world you thought you lived in
Take a bow, play the part of a lonely lonely heart
Say goodbye to the world you thought you lived in
To the world you thought you lived in
I tried to live alone
But lonely is so lonely, alone
So human as I am
I had to give up my defences

So I smiled and tried to mean it
To let myself let go
Cos it's all in the hands of a bitter, bitter man
Say goodbye to the world you thought you lived in
Take a bow, play the part of a lonely lonely heart
Say goodbye to the world you thought you lived in
To the world you thought you lived in
Cos it's all in the hands of a bitter, bitter man
Say goodbye to the world you thought you lived in
Take a bow, play the part of a lonely lonely heart
In any other world
You could tell the difference

"I never ever, I forget my story.
My face is not sad, but inside, I am sad."

'Any other world' por Mika in 'Life In Cartoon Motion'