terça-feira, 31 de julho de 2007

Vida perfeita

"Vir morte e levar-nos. E não fazermos falta a ninguém. Nem a nós. Que outra vida mais perfeita?"


Vergílio Ferreira

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Forget my fate

"(...) darkness shades me,
On thy bosom let me rest,
More I would, but Death invades me;
Death is now a welcome guest.
When I am laid in earth,
May my wrongs create
No trouble in thy breast;
Remember me, but ah! forget my fate."

Henry Purcell, in 'Dido and Aeneas' (Libretto by Nahum Tate)
.
A não perder:
O quê: "
Ópera"
Quem: Tiago Guedes e Maria Duarte
Quando: de 30 de Julho a 5 de Agosto, 21h30
Onde: Negócio/zdb (R. de O Século, 9)
Quanto: 10€
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quinta-feira, 26 de julho de 2007

Suave é viver só

"Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam."
Ricardo Reis in 'Odes'

terça-feira, 24 de julho de 2007

O recomeço

"(...) no mais das vezes, a durabilidade das relações vem de todo o lado excepto do prazer imediato que elas nos proporcionam. O Homem, criatura de hábitos, prefere a ilusão de conforto de um conhecido que já não lhe aqueça a alma ao perigo iminente da solidão fria ou às amplitudes térmicas do estado de enamoramento, e por isso rumina e retarda o fim das relações já mortas, encetando (numa lógica absurda e autista de fugas para a frente) uma sucessão de novas tentativas, repristinações e recomeços. O problema é que “o recomeço” — esse conceito nobre e luminoso que encobre uma demão de tinta mal enjorcada na nossa parede grafitada de emoções — só funcionaria se pudéssemos, um dia, reencontrar o outro, sem memória."

Laura Cravo, in 'Sem Memória'

domingo, 22 de julho de 2007

Não existo

"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida..."

Fernando Pessoa

sábado, 21 de julho de 2007

Liberté

"Sur mes cahiers d'écolier, Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre J'écris ton nom
Sur les images dorées Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade J'écris ton nom
Sur les formes scintillantes Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique J'écris ton nom
Sur les sentiers éveillés Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent J'écris ton nom
Sur la lampe qui s'allume Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunis J'écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux Dur miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide J'écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite J'écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni J'écris ton nom
Sur toute chair accordée Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui J'écris ton nom
Sur l'absence sans désir Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort J'écris ton nom
Sur la santé revenue Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté."
Paul Eluardin, in 'Oeuvres complètes 1913-1943'

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Por me faltares

"— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
.....................................................................
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
.....................................................................
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surdo,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...] ...
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas. (...)
.....................................................................
Quando eu era pequeno, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
.....................................................................
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?"
Fernando Pessoa in 'Primeiro Fausto'

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Morrerei de amor porque te quero

"Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo."

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Desintegrar-me em ti


"Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.
Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.
Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.
Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém."

Manuel Alegre, in 'Obra Poética'

terça-feira, 17 de julho de 2007

Que me tocasses


"(...) Há dia, sabes, em que gostava de ser como o gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar. (...)"

Pedro Paixão, in 'Assinar a Pele'

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Meu estremecimento

"Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém."
António Gedeão, in 'Poesia Completa'

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Trazer-te no sangue

"Apaga-me os olhos, ainda posso ver-te.
Tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te,
e sem pés posso ainda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os ossos, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá,
e se me deitares fogo ao cérebro,
hei-de continuar a trazer-te no sangue."
Rainer Marie Rilke, in 'Livro das Horas'

terça-feira, 10 de julho de 2007

A luz da noite

"É noite. O jardim resplandece à luz fraca, rasteira dos candeeiros. Ganha espessura o teu jardim, ganha vida, respondeste, olhei para as ondas, percebi que era ao seu movimento cadenciado, como um corpo adormecido, que te referias. Claro, é mais parecido, na sombra da noite escura, com o mar. O teu silêncio, depois uma pausa, depois de novo o teu silêncio, respiraste fundo: não, sim, ou melhor, sim, não. Como o mar, disseste, mas não pelas formas, sim por causa das almas que o habitam, cada corpo que aqui se deitou, cada abraço, cada grito ou choro de criança ou zanga de adulto ou mão hábil de jardineiro, a sua história só de noite se vê, recortada contra a luz que nos cega. A luz da noite, percebes? Os teus dedos tocaram nos meus ombros, os meus ombros encostaram-se aos teus dedos, foram ao encontro das mãos, roçaram pelos teus seios, aconchegaram-se no côncavo do teu corpo. Os restos de uma onda vieram cobrir-me os pés."

António Mega Ferreira, in 'A Expressão dos Afectos'


segunda-feira, 9 de julho de 2007

Ao silêncio

"Como é difícil entendermo-nos com a vida. Nós a compor, ela a estragar. Nós a propor, ela a destruir. O ideal seria então não tentarmos entender-nos com ela mas apenas connosco. Simplesmente o nós com que nos entendêssemos depende infinitamente do que a vida faz dele. Assim jamais o poderemos evitar. E todavia, alguns dir-se-ia conseguirem-no. Que força de si mesmos ou importância de si mesmos eles inventam em si para a sobreporem ao mais? Jamais o conseguirei. O que há de grande em mim equilibra-se nas infinitas complacências da vida que me ameaça ou me trai. E é nesses pequenos intervalos que vou erguendo o que sou. Mas fatigada decerto de ser complacente, à medida que a paciência se lhe esgota em ser intervalarmente tolerante, ela vai-me sendo intolerante sem intervalo nenhum. E então não há coragem que chegue e toda a virtude se me esgota na resignação. É triste para quem sonhou estar um pouco acima dela. Mas o simples dizê-lo é já ser mais do que ela. A resignação total é a que vai dar ao silêncio."

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'

quinta-feira, 5 de julho de 2007

O dia dos meus anos*


*para o André que faz hoje anos...
"No tempo em que festejava o dia dos meus anos
Eu era feliz e ninguém estava morto
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos
E a alegria de todos, e a minha
Estava certa como uma religião qualquer
No tempo em que festejava o dia dos meus anos
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma
De ser inteligente para entre a família
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças."

Fernando Pessoa

No sé del dolor

"Cuando te hablen de amor y de ilusiones
y te ofrezcan un sol y un cielo entero;
si te acuerdas de mí no me menciones
porque vas a sentir amor del bueno.
Y si quieren saber de tu pasado
es preciso decir una mentira,
dí que vienes de allá de un mundo raro,
que no sabes llorar, que no entiendes de amor
y que nunca has amado.
Porque yo a donde voy, hablaré de tu amor
como un sueño dorado
y olvidando el rencor no diré que tu amor
me volvio desgraciado.
Y si quieren saber de mi pasado,
es preciso decir otra mentira,
les diré que llegué de un mundo raro,
que no sé del dolor, que triunfé en el amor
y que nunca he llorado."
José Alfredo Jiménez

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Embriaguez de ti

Chegámos já as luzes se tinham apagado. Deixei que te sentasses primeiro para escolher o lugar de onde te poderia admirar melhor. Começou. E eu ignorava o palco para te poder observar. A estrela do espectáculo eras tu. A minha paisagem era o teu perfil. A minha música era a tua respiração. As luzes eram o brilho dos teus olhos. Ah, que vontade de mexer no teu cabelo, dar-te a mão, tocar a tua pele. Que vontade de perceber que a tua indiferença era apenas timidez, que o teu silêncio era apenas deferência, que o teu sorriso era todo para mim... Que vontade que as luzes nunca se acendessem para poder estar ali ao teu lado a sentir a tua entrega. Que desejo de que me amasses. Abandonei-me àquela contemplação. Deixei ficar a minha perna ao teu lado, sem te tocar, de tal forma próxima que sentia o calor do teu corpo. Quase esquecia a névoa que me saía do olhar sempre que te ausentavas. Que momento sublime. Que desejo. Que amor. Ah que embriaguez de ti!

domingo, 1 de julho de 2007

Vestígio de passagem


"Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem."


Fernando Pessoa
* Foto de Daniel Gustav Cramer (cuja exposição pode ser vista na Vera Cortes Art Agency até 7 de Setembro)