segunda-feira, 30 de abril de 2007

A última noite de amor

"Sinto que se aproxima de mim um destino que não escolhi. O amor corrói-me a pele, mistura-se ao desejo e não me deixa sossegar, nem mesmo quando durmo - mas o amor não é eterno. Deve ser avassaladora e medonha a última noite de amor...
(...)
Precisava bem de falar de ti, arrumar contigo duas ideias. Não sei bem que ideias sejam antes de as pensar e começarem a existir. Não sei bem o que sejam além desta curiosidade de as pensar... Gostava de saber porque te amo nesta forma estranha de te não ter amado nunca..."

Vergílio Ferreira in 'Na Tua Face'

sábado, 28 de abril de 2007

Um ano de Inquietude

in 'Tacones Lejanos' de Pedro Almodovar

Obrigado a todos quantos lêem e seguem as Inquietudes. Um ano de blog, um ano de inquietudes, um ano de amor. Um espaço que surgiu do silêncio e que tem encontrado voz nas palavras dos poetas que mais gosto. Mensagens para ninguém que se dirigem a cada um. Um ano depois continuo a entusiasmar-me com versos alheios. Um ano depois continuo a querer descobrir a foto perfeita para acompanhar as palavras perfeitas. Uma viagem solitária que tem encontrado companhia pelo caminho. A todos muito obrigado.

(O vídeo que ilustra o post? Só uma excentricidade. O que eu estava à procura era mesmo da música da Luz Casal mas no youtube foi só isto que apareceu. Como gostamos de Almodovar e gostamos do kitsch pareceu-nos bem!)

sexta-feira, 27 de abril de 2007

O teu sofrimento

"(...) Lembrei-me daquela vez em que me telefonaste a dizer que querias passar comigo uma noite em cheio. Contavas comigo para te surpreender. Fiquei numa excitação infantil. Fui para casa e como estava uma noite de verão quentíssima achei que poderíamos comer na varanda, que era o mais próximo do grande terraço com que sempre sonhaste... Fiz tudo o que era suposto. Cozinhei as coisas mais sofisticadas que sabia, com direito a entrada e sobremesa. Pus a mesa lá fora, com velas e um ambiente o mais quente e tropical possível, que nos remetesse a um cenário exótico, lembrando talvez as férias em conjunto sempre prometidas, mas nunca cumpridas... Quando acabei todos estes preparativos tomei um daqueles duches que nos deixam preparados para nos amarmos. Vesti uma camisa branca, a tua favorita, e acendi as velas todas da casa. A voz do João Gilberto fez-me companhia na aparelhagem e esperei por ti. Esperei... esperei... e nunca apareceste. Quando te liguei respondeste que não te tinha dado jeito aparecer. “Não te tinha dado jeito”... Como se tudo o que me tinha motivado não significasse nada para ti... E de facto não significava. Não te sei dizer o que senti.
Vou contar-te uma história. A minha mãe sempre trabalhou muito, fora de casa. Chegava muito tarde e eu já estava deitado. Naqueles momentos após eu me deitar, ficava muito direito e quieto na cama, esperando que a porta de casa abrisse. Era terrível aquela angústia, a de não querer adormecer sem ouvir o barulho da chave que significava que provavelmente a mãe iria ao quarto dar-me um beijo de boa noite. Acabava sempre por adormecer, e no meio da revolta da manhã seguinte, ficava em mim uma sensação de vazio que me deixava inseguro e muito só. Pior que isso era estar acordado e perceber que os passos dela se encaminhavam para todos os lados menos para o meu quarto. Aí sim, sofria a sério. Sentia algo a quebrar-se por dentro e penso, agora, que foi assim que fui perdendo a noção de ser criança.

Conto-te isto porque nessa noite, todas essas imagens e sensações da minha infância voltaram a percorrer o meu cérebro. Acho que por instantes voltei a ser a criança solitária que fui. Desta vez não chorei, desta vez limitei-me a apanhar os pedacinhos de mim. E prometi a mim mesmo que iria ser forte de novo. Dias depois começou o teu processo penoso em direcção ao fim. E eu esqueci-me da minha promessa e mesmo contra tua vontade, acompanhei-te e estive ao teu lado, assistindo a algo que sempre me proibiste de ver: o teu sofrimento."


Pedro Rapoula in 'Iniciação à Tristeza'

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Luz

"Se eu pudesse deixar de correr
Caminhava se eu pudesse deixar de caminhar
Sentava-me à sombra da nogueira azul do céu
Se eu pudesse deitar-me deitava-me
Numa cova com a forma do meu corpo em
Repouso se eu pudesse deixar de cantar
Fechava os olhos e olhava o alto vazio
Onde não acontece nada a não ser
A conciliação provisória do caos
E da luz que não se cansa de nascer."
Casimiro de Brito in 'Na Via Do Mestre'

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Madrugada

"Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo"

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 24 de abril de 2007

Tarde

"Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!"


José Carlos Ary dos Santos in 'As Palavras das Cantigas'

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Lonely

"(...) I am a lonely painter
I live in a box of paints
I'm frightened by the devil
And I'm drawn to those ones that ain't afraid
I remember that time that you told me,
Love is touching souls
Surely you touched mine
'Cause part of you pours out of me
In these lines from time to time (...)"

Joni Mitchell por Cristina Branco in 'Ulisses'

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Tudo

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de carácter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
(...)"
Álvaro de Campos in 'Poesia'

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Pergunta

"Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinzas
e despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enovoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer"

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Alheamento

"Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim."


Eugénio de Andrade in 'Coração do dia'

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Nunca se sabe

"Nunca se sabe o que é para sempre, sobretudo nas coisas do amor. E era uma coisa do amor, isto tudo. São tão estranhas as coisas do amor que não se compreendem por inteiro. Tem de se estar sempre a fazer suposições. Nunca se sabe como e até que ponto e até quando. [...]Quando se perde tudo pela primeira vez fica-se com o terror de perder todas as vezes. [...] O primeiro amor dá cabo de nós. E o último é sempre o primeiro."



Pedro Paixão in 'Nos teus braços morreríamos'

sexta-feira, 13 de abril de 2007

A ausência

"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."


Carlos Drummond de Andrade in 'Antologia Poética'

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Agora/ Todo o dia

"Debaixo d' água tudo era mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água se formando como um feto
sereno confortável amado completo
sem chão sem teto sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber o quanto
esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água ficaria para sempre ficaria contente
longe de toda gente para sempre
no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Debaixo d'água protegido salvo fora de perigo
aliviado sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio sem medo sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água tudo era mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Agora que a agora é nunca Agora posso recuar Agora sinto minha tumba Agora o peito a retumbar Agora a última resposta Agora quartos de hospitais Agora abrem uma porta Agora não se chora mais Agora a chuva evapora Agora ainda não choveu Agora tenho mais memória Agora tenho o que foi meu Agora passa a paisagem Agora não me despedi Agora compro uma passagem Agora ainda estou daqui Agora sinto muita sede Agora já é madrugada Agora diante da parede Agora falta uma palavra Agora o vento no cabelo Agora toda minha roupa Agora volta pro novelo Agora a língua em minha boca Agora meu avô já vive Agora meu filho nasceu Agora o filho que não tive Agora a criança sou eu Agora sinto um gosto doce Agora vejo a cor azul Agora a mão de quem me trouxe Agora é só meu corpo nu Agora eu nasço lá de fora Agora minha mãe é o ar Agora eu vivo na barriga Agora eu brigo pra voltar Agora... "

Arnaldo Antunes e Titãs, na voz de Maria Bethânia in 'Mar de Sophia'

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Estou cansado


"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa."
Álvaro de Campos in 'Poesia'

terça-feira, 10 de abril de 2007

Há dias


“Há dias cheios de vento,
Há dias cheios de raiva…
Há dias cheios de lágrimas.
Mas depois…
Há dias há dias cheios de amor,
Que nos dão coragem de ir em frente,
Todos os dias da nossa vida.”


M. Batagglia

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Tempo

"No tempo em que éramos felizes não chovia.
Levantávamo-nos juntos, abraçados ao sol.
As manhãs eram um céu infinito. O nosso amor
era as manhãs. No tempo em que éramos felizes
o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
As marés traziam o fim da tarde e não víamos
mais do que o olhar um do outro. Brincávamos
e éramos crianças felizes. Às vezes ainda
te espero como te esperava quando chegavas
com o uniforme lindo da tua inocência.
Há muito tempo que te espero.
Há muito tempo que não vens. "

José Luís Peixoto in "A criança em ruínas"

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Palavras

"Olhava para a fotografia daquela que amei com amor. Amor. Amor. Amor, gostava de dizer esta palavra até gastá-la ainda mais. Amor, gostava de dizer esta palavra até perder ainda mais o seu sentido. Amor. Amor. Amor, até ser uma palavra que não significa nem sequer uma ilusão, uma mentira. Amor, amor, amor, nem sequer uma mentira, nem sequer um sentimento vago e incompreensível. Amor amor amor, até ser nem sequer uma palavra banal, nem sequer a palavra mais vulgar, nem sequer uma palavra. Amoramoramor, até ao momento em que alguém diz amor e ninguém virará a cabeça para ouvir, alguém diz amor e ninguém ouve, alguém diz amor e não disse nada."

José Luís Peixoto in "Uma casa na Escuridão"

terça-feira, 3 de abril de 2007

Todos os dias

"Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo."
Alberto Caeiro in 'Poesia'

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Nada


"(...)
Eu que não sei quase nada do mar
Descobri que não sei nada de mim
(...) "


Ana Carolina por Maria Bethânia em "Pirata"