segunda-feira, 30 de junho de 2008

Mas o amor também tem o peso do mundo


"Poderia libertar-me do peso do mundo nos teus braços;
poderia tirá-lo de cima de mim, atirá-lo para o outro lado
da casa, para algum canto escondido; e poderia
ficar contigo, na leveza do teu corpo, ouvindo
o cair do tempo nalgum relógio invisível.
O mundo, no entanto, insiste comigo. Está ali,
no fundo da casa, com o seu peso. Espera que alguém
pegue nele, e volte a descer a escada, curvado, como
se tudo o que tivéssemos de fazer fosse carregá-lo
para baixo e para cima, nestas escadas sem elevador.
E eu, contigo, ao abraçar-te, espero que o mundo
não se mexa no seu canto, no fundo da casa. Abraço-te
como se o teu corpo me libertasse desse peso, como
se ele não estivesse à minha espera, para que o desça
e suba por estas escadas de um prédio sem elevador.
Mas o amor também tem o peso do mundo. E as
palavras com que nos despedimos, antes que eu pegue nele
e te deixe entregue à tua leveza, trazem o eco das coisas
que atirei para o fundo da casa, onde não quero que vás,
para que não tenhas de carregar, também tu, o peso do mundo."

Nuno Júdice, in 'Rimas e Contas'
(para te dizer que tenho muitas saudades da tua leveza)

domingo, 29 de junho de 2008

Para eu aprender a estar só



"Porque curiosamente, onde menos te encontro é onde tu exististe. Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre. Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo."

Vergílio Ferreira, in 'Cartas a Sandra'

sábado, 28 de junho de 2008

Que é toda minha a saudade



"Foi por vontade de Deus
que eu vivo nesta ansiedade.
Que todos os ais são meus,
Que é toda a minha saudade.
Foi por vontade de Deus.

Que estranha forma de vida
tem este meu coração:
vive de forma perdida;
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.

Coração independente,
coração que não comando:
vive perdido entre a gente,
teimosamente sangrando,
coração independente.

Eu não te acompanho mais:
para, deixa de bater.
Se não sabes onde vais,
porque teimas em correr,
eu não te acompanho mais."

Amália Rodrigues
(Porque é mesmo toda a minha a saudade. Sinto tanto, tanto a tua falta...)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Transpondo os versos vieste a minha vida


"Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.
Os abismos das coisas quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!
Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!
Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.
Transpondo os versos vieste a minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!"
Carlos de Oliveira, 'Carta a Ângela'

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Real happiness

"Okay, life's a fact, people do fall in love, people do belong to each other, because that's the only chance anybody's got for real happiness."
"Breakfast at Tiffany's" de Blake Edwards (1961)
(roubado
daqui)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Tudo quanto sentia


Olharam-se nos olhos como se fossem estranhos e nada daquilo tivesse acontecido. Depois ela começou a falar. A voz saía-lhe mais tranquila do que imaginara. Ensaiara um discurso em casa porque receava que as suas emoções a atraiçoassem e perdesse assim a oportunidade de lhe dizer tudo quanto sentia.

- Sabes, não respeitar os sentimentos dos outros é também uma forma de não gostar dos outros. Não se pode dar sinais numa direcção e depois fugir para outra. Porque és tu quem eu quero apesar de te querer devagar. Estou cansada de desencontros e de não te compreender. Porque por vezes é melhor a verdade do que a omissão. Porque gostava apenas que me dissesses cara a cara que não é nada disto, que estou enganada. Ou que me dissesses apenas que o que eu quero tu não queres.

O seu tom de voz decidido não deixava margens para dúvidas. Ele baixou os olhos, bebeu um pouco do gin que tinha nas mãos e não disse nada. No seu pensamento estava apenas o momento em que se viram pela primeira vez naquele aeroporto do Rio de Janeiro.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Hei-de encontrar o caminho



"Cinzento porque chovia
Todo o céu que me cobria
Comigo chorava tanto
Mas ali à minha frente
Afastado e tão presente
O rio secou o meu pranto

No fundo das suas águas
Adormeceu minhas mágoas
E acordei menos triste
A dor ao mar entregava
Enquanto às margens contava
A razão por que partiste

Sem ti seguirei viagem
Como o rio que larga a margem
E continua sozinho
Com a força da corrente
Que se reparte entre a gente
Hei-de encontrar o caminho

É na força da corrente
Que se reparte entre a gente
Que eu encontro o meu caminho"

Aldina Duarte e Manuela de Freitas por Camané, in 'Esta coisa da alma'

segunda-feira, 23 de junho de 2008

As minhas lágrimas juntas


"Amar por amar não posso.
Amar por amar não sei.
Amar por amar não posso.
Amo aquilo só que é nosso
Amando à margem da lei.


Amar por amar não posso
Amar por amar não sei.

(...)


Ninguém me faça perguntas!
Trago o coração já frio...
Ninguém me faça perguntas,
Que as minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!


As minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!


Pedro Homem de Mello, in 'Fandangueiro'

domingo, 22 de junho de 2008

É tão simples ser feliz


Um sábado cheio de sol e coisa nenhuma para fazer. O mimo de quem gosta mesmo de nós. (O bem que me fazes, Marta!) Um brunch com amigos no Príncipe Real. Um convite inesperado para almoçar numa quinta do século XVI nos arredores de Lisboa. Um cesto de ginjas para a dona da casa. Chegar e ter melão fresquinho à nossa espera acompanhado de uma limonada acabada de fazer. Um mergulho numa piscina com água da nascente. Ioga antes de almoçar. Um almoço no jardim que se estende pela tarde fora. O carinho de quem é civilizado e nos faz sentir em casa. Um atelier de uma GRANDE artista e a vontade de ficar por ali a pintar com ela. Buganvílias em flor e a vontade de trazer aquela cor connosco. A certeza de que encontrarei aquela cor na Índia dentro de pouco tempo. Uma despedida com promessa de muitos mais dias assim. A percepção de que há coisas que ocupam a nossa mente (e o nosso coração) e afinal não nos fazem falta nenhuma. A convicção de que a nossa felicidade só depende de nós: é tão simples ser feliz!

Obrigado Marta, Paulo, Rosário e Ana pela companhia. Obrigado Graça e Manuel por receberem tão bem!
(A foto foi tirada com o meu telemovel.)

sábado, 21 de junho de 2008

Desses nossos desencontros



"Paz, eu quero paz
Já me cansei de ser a última a saber de ti
Se todo mundo sabe quem te faz chegar mais tarde
Eu já cansei de imaginar você com ela
Diz pra mim se vale a pena, amor
A gente ria tanto desses nossos desencontros
Mas você passou do ponto e agora eu já não sei mais...

Eu quero paz
Quero dançar com outro par para variar, amor
Não dá mais pra fingir que ainda não vi
As cicatrizes que ela fez
Se desta vez ela é senhora deste amor
Pois vá embora, por favor
Que não demora pra essa dor... sangrar"


Marcelo Camelo (Los Hermanos) por Maria João, in 'Maria João'
(Uma música que adoro da voz mais fantástica que existe em Portugal: Maria João)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

A hora é suave


"No ouro sem fim da tarde morta,
Na poeira do ouro sem lugar
da tarde que me passa à porta
para não parar,

No silêncio dourado ainda
dos arvoredos verde fim
recordo. Eras antiga e linda
e estás em mim...

Tua memória há sem que houvesses
teu gesto, sem que fosses alguém
como uma brisa me estremeces
e eu choro um bem...

Perdi-te. Não te tive. A hora
é suave para a minha dor.
Deixa meu ser que rememora
sentir o amor,

Ainda que amar seja um receio,
uma lembrança falsa e vã,
e a noite deste vago anseio
não tenha manhã."

Fernando Pessoa

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Que sejam justos


"Ensina-se-lhes que sejam valentes, para um dia virem a ser julgados por covardes! Ensina-se-lhes que sejam justos, para viverem num Mundo em que reina a injustiça! Ensina-se-lhes que sejam leais, para que a lealdade, um dia, os leve à forca! Não seria mais humano, mais honesto, ensiná-los, de, pequeninos, a viverem em paz com a hipocrisia do mundo?
Quem é mais feliz: o que luta por uma vida digna e acaba na forca, ou o que vive em paz com a sua inconsciência e acaba respeitado por todos?"


Luís de Sttau Monteiro, in 'Felizmente Há Luar!' (Acto II)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Haja o que houver



"Haja o que houver eu estou aqui
Haja o que houver espero por ti
Volta no vento ó meu amor
Volta depressa por favor
Há quanto tempo já esqueci
Porque fiquei longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento por favor
Eu sei quem és para mim
Haja o que houver espero por ti"

Pedro Ayres Magalhães, pelos Madredeus in 'O Paraiso'
(Porque eu estou de facto aqui. E porque, haja o que houver, espero por ti. Assim tu o desejes. E porque os teus problemas podem ser partilhados. E porque pensar faz bem, mas partilhar faz melhor ainda.)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

De todos os ausentes o ausente


"Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio.

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para alem do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente."


Sophia de Mello Breyner Andresen
(Porque a tua ausência me pesa. Porque o teu silêncio me desorienta.)

domingo, 15 de junho de 2008

Mesmo em sonhos proibidos


"Deixa-me olhar
Por dentro do teu olhar
E abrir de par em par
Nossa janela ao destino
E quando entrar
Sempre e em cada momento,
A ouvir a voz do vento
Partiremos sem pensar
Nesse lugar,
Seja lá aonde for!,
Vou fazer do nosso amor
Mil versos p'ra te cantar.
Quero viver
Por dentro dos teus sentidos,
Mesmo em sonhos proibidos
Descobrir a realidade...
Ser tudo ou nada
Mas sempre contigo ao lado
Porque me dás este fado
De viver a felicidade...
Pois nesta vida
Que Deus nos deu p'ra viver
Tudo pode acontecer
Sem nunca haver despedida!"

João Veiga por Katia Guerreiro, in 'Tudo ou Nada'

sábado, 14 de junho de 2008

Põe a tua mão


"Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.

Eu não sei porquê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo."  

Fernando Pessoa

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os instantâneos silêncios de certas formas


"Entre amigo e amigo
jamais se afastam 
coisas tão felizes:
os instantâneos silêncios de certas formas
os protestos inocentes à nossa passagem
a natureza fortuita, dizia eu
imortal, dizias tu
do vento?"
José Tolentino Mendonça, in 'Baldios'
(porque há noites que são continuações mas também são começos)

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Precauções, derrotas, recusas


"Vi pela primeira vez o mar
era muito difícil frente a mim
compreender esse território absoluto
falámos só de coisas inúteis
e o mundo inteiro se escondia

somos novos. Lemos nos olhos fechados
precauções, derrotas, recusas
quando a intimidade sugere
a maior compaixão" 

José Tolentino Mendonça in 'A Que distância Deixaste o Coração'

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Em nome da tua ausência


"Em nome da tua ausência
Construi com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Orpheu e Eurydice'

terça-feira, 10 de junho de 2008

Portugal


"Talvez que eu morra na praia,
Cercado, em pérfido banho,
Por toda a espuma da praia,
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho...

Talvez que eu, morra na rua
- ínvia por mim de repente –
Em noite fria, sem Lua,
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!

Talvez que eu morra entre grades,
No meio duma prisão
E que o mundo, além das grades,
Venha esquecer as saudades
Que roem meu coração.

Talvez que eu morra dum tiro,
Castigo de algum desejo.
E que, à mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo...

Talvez que eu morra num leito,
Onde a morte é natural,
As mãos em cruz sobre o peito...
Da mão de Deus tudo aceito.
- Mas que eu morra em Portugal!"

Pedro Homem de Mello

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Uma mão humana

"Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém."
Clarice Lispector

sábado, 7 de junho de 2008

Uma cançao que fosse só tua

Certa vez disse-te que um dia te escrevia uma canção. Tu respondeste que sim, que gostavas muito que isso acontecesse. Fui para casa e comecei a juntar palavras na certeza de que queria mesmo escrever uma canção que fosse só tua. Depois percebi que a verdadeira canção estava no teu sorriso. Percebi que os melhores acordes eram os teus olhos. Que a melodia perfeita era o teu olhar. Que não havia partitura tão feliz como o teu corpo. Percebi que eras tu a sinfonia. E que eu nunca seria um compositor de canções porque nem as palavras nem as notas musicais tinham escala para celebrar o que sentia por ti. 

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Made for you



"All of these lines across my face
Tell you the story of who I am
So many stories of where I've been
And how I got to where I am
But these stories don't mean anything
When you've got no one to tell them to
It's true...I was made for you

I climbed across the mountain tops
Swam all across the ocean blue
I crossed all the lines and I broke all the rules
But baby I broke them all for you
Because even when I was flat broke
You made me feel like a million bucks
Yeah you do and I was made for you

You see the smile that's on my mouth
Is hiding the words that don't come out
And all of my friends who think that I'm blessed
They don't know my head is a mess
No, they don't know who I really am
And they don't know what I've been through like you do
And I was made for you..."

Brandi Carlile, in 'The Story'

E nunca mais

"Para te amar ensaiei os meus lábios...
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!

Para tocar-te ensaiei os meus dedos...
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio...
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!

E a vida foi passando, foi passando...
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.

A vida foi passando, foi passando...
E nunca mais vieste!"

Pedro Homem de Mello, in 'Poesias Escolhidas'

quinta-feira, 5 de junho de 2008

palácios e pérolas


"(...)

foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

(...)"

Adília Lopes, in 'Obra'
(porque li isto vezes sem conta sem perceber o quanto faz sentido)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Desse amor que eu nego tanto



"Já conheço os passos dessa estrada,
Sei que não vai dar em nada,
Seus segredos sei de cor.
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar tanto pior.
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto,
Evito tanto,
E que no entanto,
Volta sempre a enfeitiçar?
Com seus mesmos tristes, velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar.
Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer.
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado.
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão.
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração."

Tom Jobim por Maria João, in 'João'

terça-feira, 3 de junho de 2008

Entre um anseio vão e um sonho vão

"Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem."

Fernando Pessoa

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Livre mas triste

"Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida."

Fernando Pessoa

domingo, 1 de junho de 2008

Nem já o pranto



"Como diferem das minhas
As penas das avezinhas
Que de leves leva o ar
Só as minhas pesam tanto
Que às vezes nem já o pranto
Lhes alivia o pesar

As minhas penas não caem
Nem voam nunca, nem saem
Comigo desta amargura
Mostram apenas na vida
A estrada já conhecida
Trilhada pelos sem ventura

Passam dias, passam meses
Passam anos, muitas vezes
Sem que uma pena se vá
E se uma vem, mais pequena
Ai, depois nem vale a pena
Porque mais penas me dá

Que felizes são as aves
Como são leves, suaves,
As penas que Deus lhes deu
Só as minhas pesam tanto
Ai, se tu soubesses quanto...
Sabe-o Deus e sei-o eu"


Fernando Caldeira por Carmo Rebelo de Andrade