segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Sei bem o que faço

'Existem pessoas para quem a vida não chega e depois existem as outras para quem a vida é demasiado longa', pensou com ironia enquanto tomava o último dos 54 comprimidos que andava a juntar para o dia em que perdesse a paciência de uma vez por todas. Tinha sido exactamente isso que escrevera na nota de despedida, uma nota breve, concisa e talvez explicativa demais para a sua personalidade simples.
Tinha escolhido o último dia do ano para pôr termo à sua triste existência. Arrumara a roupa e fizera lotes de cd's e livros que separara com um post-it para cada um dos seus amigos mais chegados. Depois de limpar toda a casa dedicou um tempo especial a preparar a sua cerimónia fúnebre. Queria que fosse uma coisa simples, claro, mas queria que fosse absoluta e esteticamente inesquecível. Para o velório colocou no seu I-pod uma playlist a que chamou 'Série Músicas que Arrepiam' com as músicas que deveriam passar em repetição até que tudo aquilo acabasse. Eram as suas músicas favoritas. Cada uma delas tinha uma mensagem importante para cada um dos seus amigos e cabia-lhes agora decifrar esse puzzle.
Escolheu para que lhe vestissem um fato cinzento escuro, uma camisa branca e uma gravata roxa, a sua predilecta, que por ter pequenas coroas lhe garantia sempre uma ou outra piada que envolvia a República e a Monarquia. Escolheu a roupa interior com o mesmo cuidado com que escolheria se fosse o dia do seu casamento. Engraxou os sapatos e arranjou tudo colocando em cada sítio post-its amarelos que fossem indicando o caminho a quem tivesse que o preparar para o seu funeral.
À medida que o tempo passava e os comprimidos começavam a fazer efeito ia ficando cada vez mais seguro de que tinha tomado a decisão correcta. Estava, evidentemente, com medo de que as coisas não corressem bem, mas por outro lado sabia que a libertação era garantida.
Deitou-se finalmente na cama feita de lavado, colocou ao seu lado uma Bíblia e na mão prendeu o terço de plástico que brilha no escuro que trazia habitualmente ao pescoço. Enquanto as pálpebras se iam tornando cada vez mais pesadas começou a rezar fixando a fotografia dos pais que tinha na cómoda do seu quarto. Rezava para que soubessem sobreviver à sua morte, para que compreendessem o seu cansaço, para que perdoassem a sua cobardia. Antes de fechar os olhos pela última vez disse bem alto 'Perdoa-me Senhor, mas sei bem o que faço". Lembrou-se no último instante da resposta de Virgínia Woolf à pergunta "where will we go when we die?" que a sua pequena sobrinha lhe dirigira. "We go back to where we came from"... Suspirou fundo e deixou-se morrer. Morria no auge das suas capacidades, consciente de que se vivesse caminharia inexoravelmente por uma vida de desencanto e desilusão.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Orgulho


"(...)
Julguei-me grande pelo sofrimento
E pelo orgulho ainda sou maior
(...)"


Florbela Espanca, in 'Eu não sou de ninguém'

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Na cruz do teu adeus

Lágrima por lágrima hei-de te cobrar
Todos os meus sonhos que tu carregaste, hás-de me pagar
A flor dos meus anos, meus olhos insanos de te esperar
Os meus sacrifícios, meus medos, meus vícios, hei-de te cobrar
Cada ruga que trouxer no rosto, cada verso triste que a dor me ensinar
Cada vez que no meu coração, morrer uma ilusão, hás-de me pagar
Toda a festa que adiei, tesouros que entreguei, a imensidão do mar
As noites que encarei sem Deus, na cruz do teu adeus, hei de te cobrar...
Lágrima por lágrima.

Roque Ferreira por Maria Bethânia, in 'Dentro do Mar tem Rio'

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Quem por amor se perdeu



Quem por amor se perdeu não chore, não tenha pena
Uma das santas do céu foi Maria Madalena!

Desse amor que nos encanta
Até Cristo padeceu
Para poder tornar santa
Quem por amor se perdeu

Jesus só nos quis mostrar que o amor não se condena
Por isso quem sabe amar não chore, não tenha pena!

A Virgem Nossa Senhora
Quando o amor conheceu
Fez da maior pecadora
Uma das santas do céu

E de tanta que pecou, da maior à mais pequena
E aquela que mais amou foi Maria Madalena!


Augusto Gil (1873-1929), in 'Music Box' de Yolanda Soares
(um dos melhores projectos em língua portuguesa dos últimos tempos!
Estou à espera do próximo Yolanda!!)

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

As sombras da tua pele

"Meu amor corre-me o corpo
Com beijos soltos nos dedos
Que as sombras da tua pele
Aprendam os meus segredos.
.
Meu amor corro-te o corpo
Com beijos soltos dos dedos
Que as sombras da minha pele
Naveguem nos teus segredos
.
Meu amor corre-me o corpo
Com beijos soltos pelos dedos
Que as sombras da minha pele
Se soltem dos teus segredos"


Circe in Ulisses de Cristina Branco

domingo, 16 de dezembro de 2007

No dia em que faço 30 anos

Quando era pequeno imaginava-me já adulto, com 30 anos. Imaginava como ia ser a minha vida e os sonhos e as ilusões desfilavam como se o mundo não tivesse limites. Fazer anos é também fazer balanços. E o balanço, aos 30, é muito positivo. Cheguei calmamente aos 30. As ilusões e os sonhos foram mudando, desparecendo, dando lugar a realidades e a factos. Aos 30 anos sou substancialmente diferente daquilo que imaginei que seria. Não sei dizer se sou mais ou menos feliz. Estou seguro de que sou um felizardo. Tenho ao meu lado, na minha vida, os melhores amigos do mundo. Sei que conto com eles mesmo quando acho que estou sozinho. Os meus amigos são o meu capital e eu sou riquíssimo. Aos amigos soma-se uma uma fé a cada dia mais fortalecida no Deus de Amor e de Misericórdia. É bom ter um Pai que olha por mim, diariamente, assegurando que mesmo nos momentos mais duros eu sou "levado ao colo". Tenho a benção de ter uma família extraordinária, uns pais que fazem tudo por mim e uns irmãos que são, provavelmente os melhores do mundo porque são também os meus melhores amigos. Tenho um trabalho que me estimula diariamente, que não deixa margem para rotinas e que me garante uma realização profissional que nunca imaginei possível com a minha idade. Tudo isto faz com que os 30 anos cheguem serenamente, sem angústias. Tenho sede de viver os próximos 10 e de chegar aos 40 tão tranquilo como me sinto hoje. "Esta é só uma noite para comemorar". Obrigado a todos pela presença, pelo carinho, pela paciência, pela amizade, pelas palavras e pelo silêncio. Sou como sou, hoje, graças a todos os que conheci. Obrigado.

"Esta é só uma noite para partilhar
qualquer coisa que ainda podemos guardar
cá dentro num lugar a salvo para onde correr
quando nada bate certo
e se fica a céu aberto
sem saber o que fazer
Esta é só uma noite para comemorar
qualquer coisa que ainda podemos salvar
no tempo um lugar pra nós onde demorar
quando nada faz sentido
e se fica mais perdido
e se anseia pelo abraço de um amigo
Esta é só uma noite para me vingar
do que a vida foi fazendo sem nos avisar
foi-se acumulando em fotografias,
em distâncias e saudade numa dor
que nunca acaba e faz transbordar os dias
Esta é só uma noite para me lembrar
que há qualquer coisa infinita como o firmamento,
um sorriso, um abraço
que transcende o tempo

e ter medo como dantes de acordar
a meio da noite a precisar de um regaço"

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Real

Foi no teu olhar frio e na rapidez das tuas palavras, na vontade que demonstravas ter em sair dali o mais rápido possível e na forma como te despediste de mim quando entraste no elevador que percebi que o fim era real. Doeu mais do que imaginava.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Do tempo

Tenho saudades tuas. Do tempo em que éramos dois mas éramos um só. Do tempo em que o primeiro telefonema do dia era para ti. Do tempo em que éramos um do outro e gostávamos disso. Do tempo em que os dias passavam devagar mas não importava porque à noite estávamos juntos. Do tempo em que os teus pés gelados procuravam os meus debaixo dos lençóis. Do tempo em que falávamos com o olhar. Do tempo em que o teu toque me arrepiava. Do tempo em que os teus abraços eram remédio para tudo. Do tempo em que o silêncio não era uma arma. Do tempo em que as discussões eram pretexto para nos amarmos. Do tempo em que me sentia amado. Do tempo em que me fazias feliz e eu a ti. Do tempo em que éramos felizes mas não sabíamos. Tenho saudades nossas.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Só sei que não posso ficar


"Só hoje senti que o rumo a seguir levava pra longe
Senti que este chão já não tinha espaço pra tudo o que foge
Não sei o motivo pra ir só sei que não posso ficar
Não sei o que vem a seguir mas quero procurar
E hoje deixei de tentar erguer os planos de sempre
Aqueles que são pra outro amanhã que há-de ser diferente
Não quero levar o que dei talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar um pouco de céu
Um pouco de céu
Só hoje esperei já sem desespero que a noite caísse
Nenhuma palavra foi hoje diferente do que já se disse
E há qualquer coisa a nascer bem dentro no fundo de mim
E há uma força a vencer qualquer outro fim
Não quero levar o que dei talvez nem sequer o que é meu
É que hoje parece bastar um pouco de céu
Um pouco de céu"

"Um pouco de céu" de Mafalda Veiga, in 'Tatuagem'

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Infinitamente assim

"Mesmo quando não te vejo, é nisto que penso: és tão bonita.
Queria-to dizer, mas não consigo: há coisas que não sei dizer.
Penso nelas e vejo-as muito claramente, mas não consigo dizê-las.
A beleza tornou-te inaudita.
Sorrio.
Olho para a estrada mas a pensar em ti.
O meu silêncio nomeia devagarinho a tua beleza.
Invoco-te de uma forma delicada. Invoco cada detalhe, cada
pormenor. Mas é da beleza por inteiro que o meu silêncio se ocupa.
Silêncio e beleza e pensamento, ocupam-se por inteiro.
Preenchem-se.
Mesmo calado, penso em ti e consigo ver-te.
Apesar de olhar para a frente, é para dentro que eu vejo.
Poderias ficar infinitamente assim: tu.
Até que um dia o esquecimento seja mais forte, eu vejo-te.
Os olhos, os lábios, a boca, a testa, o nariz, as mãos, o cabelo, o pescoço, a pele.
Tu.
Tu com o teu sorriso.
Até mesmo esse ar sério que fazes quando não olhas para mim.
A maneira como fumas ou como olhas para a frente
enquanto avançamos pela estrada. Tu. Eu. Nós.
O mesmo instante.
A juventude é o chão sob os teus pés. E eu sempre a pensar
até quando não digo nada: és tão bonita.
Mesmo quando não acontece nada.
Até quando já não penso em ti."

Rui Machado, in 'A Ausência Próxima'

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Tudo



Nem tudo o que é sol me parece dia
Nem tudo o que é noite me parece lua
Nem tudo o que é lua me parece estrela
Nem tudo o que me dizes é verdade sentida
Nem tudo o que é abraço me parece um beijo
Nem tudo o que é carinho me parece amor
Nem tudo o que me mostras é aquilo que vejo
Nem tudo o que choro te parece dor.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Irremediavelmente longe ou demasiado perto


"(...)
Eu por mim nunca sei
se estou irremediavelmente longe ou demasiado perto de Deus
às vezes pergunto-me quantas vezes o corvo deverá
bater as asas negras
entre o meu corpo e o seu"
José Tolentino Mendonça, in 'A Estrada Branca'

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

De saudade e remorso e ausência sem ter fim


"Os amigos...
(Enquanto oiço, numa tenda montada ao vento do rio Tejo, as novas canções da «Madredeus»)
... São aqueles que sabem sorrir depois de muitos anos de ausência. Os que se comovem com um abraço forte e chegado. Os que sabem ler no silêncio as palavras que nos faltaram. Cujos nomes não esquecemos nem precisamos de lembrar. São os que queríamos ao pé de nós naquele momento que eles não poderiam adivinhar. Os que estão sempre. São os que citamos. Cujas histórias recordamos com gosto e prolongadamente. Os que nos fazem lembrar. São aqueles de quem nos lembramos numa paisagem que se reconhece, num cheiro que nos faz lembrar, numa cor que nos diz respeito. Os que aparecem repentinamente e nos surpreendem. Aqueles com quem quero agora partilhar estas canções. Aqueles que queria agora aqui bem perto. Os que encontro nestes bastidores e me fazem voltar anos e anos para trás. São os olhares que não mudaram, as palavras e os risos que perdemos da vista e do ouvido e imediatamente nos soam e são familiares. Os que dizem a palavra que ficou debaixo da língua. Os que percebem a palavra sem que a digamos. São os que não têm medo de olhar, mesmo quando olhar custa porque o tempo passou e estamos todos mais velhos. São os que descem juntos ao «abismo do vertiginoso futuro». Os que não cobram nem pagam. Os que mantém a conta-corrente em aberto. Os que sabem que a soma das partes não faz um todo, mas não deixam de entender que no todo estão partes de cada um de nós.
Passam os anos e regressamos sempre, e há reencontros que nos parecem óbvios, ainda que inesperados, e outros que nos apanham de surpresa, mesmo que improvisados num degrau dos dias.
São assim. São os que sei que vou ver no próximo concerto, na próxima paragem, na próxima estação. Os que acabam por parar sempre nos lugares onde também inevitavelmente paro. Os que abrandam, não vá a gente estar por ali. Os que «apitam», «assobiam», telefonam, chamam, gritam. Cujas vozes andam connosco para todo o lado, como grilos nas noites de Verão, e a elas recorremos quando de uma voz precisamos, quando daquela voz precisamos. São os que nunca morrem, mesmo quando vão daqui para outro lado,(...). Os que ficam nossos porque dos nossos também são(...). São os que de certeza inspiraram uma canção – (...)– ou de quem nos lembramos por causa de uma canção. Os que fazem o coração dar voltas sobre si próprio de saudade e remorso e ausência sem ter fim. São os que merecem o ponto de exclamação no final de um sonoro «que falta que me faz». E a falta que faz um ! no fim deste «que falta me faz». Fica: !
... E a falta, por mais falta que seja, nunca nos falta quando é deles que falamos. Porque neste «balanço de perdas e danos» o melhor é sabermos que existem e pensam em nós como nós pensamos neles. Um dia vamos chorar porque queríamos mais, e mais tempo, e o tempo não chegou.
São os que nos ajudam, os que ainda sabem quem somos e de que somos capazes. Os que nos recordam quem fomos. Aqueles em quem nos revemos, nem que seja por instantes, nem que seja por conta de um instante que já passou. Aqueles cuja palavra é exacta, um «sim» quer dizer mesmo «sim», um «não» é a perfeita negação, a recusa, a rejeição.
... Na exactidão da verdade, eles são o pior e o melhor de nós. Penso neles quando passo uma noite a ouvir a «Madredeus». Penso neles quando regresso ao meu melhor passado e sinto que o tempo não me afastou. Nem eu dele. Como dos amigos. E eu deles."




Pedro Rolo Duarte, in 'Sozinho em Casa'

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Que há de ser de mim?


"(...)
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
(...)"

Álvaro de Campos, in 'Passagem das Horas'

sábado, 24 de novembro de 2007

Há nos meus olhos ironias e cansaços

'Cântico Negro' de José Régio, por Maria Bethânia

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Saudades


“Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinha..... Essa – a alegria que Ele quer...”


João Guimarães Rosa, in 'Grande Sertão: Veredas'

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A mais dolorosa das histórias

"Silêncio
Façam silêncio
Quero dizer-vos minha tristeza
Minha saudade e a dor
A dor que há no meu canto
Oh, silenciai
Vós que assim vos agitais
Perdidamente em vão
Meu coração vos canta
A mais dolorosa das histórias
Minha amada partiu
Partiu
Oh, grande desespero de quem ama
Ver partir o seu amor"


Vinícius de Moraes, in 'Poesia completa e prosa: Cancioneiro'

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?

"Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado."

Esquadros de Adriana Calcanhoto, in 'Público'

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Talvez seja assim todo o amor

"Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis
Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor."

José Tolentino de Mendonça in 'De igual para igual'
(obrigado pela sua companhia Pd. Tolentino, e pelas muitas conversas que nos esperam)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

São Paulo (ou o descanso do guerreiro)

"Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas
da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee,
a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
chamei de mau gosto o que vi de mau gosto, mau gosto
é que Narciso acha feio o que não é espelho
e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
afasto o que não conheço
e quem vende outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te de realidade
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
da força da grana que ergue e destrói coisas belas
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
mais possível novo quilombo de Zumbie
os novos baianos passeiam na tua garoa
e novos baianos te podem curtir numa boa."

Sampa de Caetano Veloso, in 'Circulado ao Vivo'

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Morreria

"Nega-me o pão, o ar, a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso, porque então morreria."

Pablo Neruda
(num dia feliz, passado em sua casa, onde só faltou o teu sorriso...)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Estoy triste: pero siempre estoy triste.


"Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.
Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.
Fui tuyo, fuiste mía. Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasó.
Fui tuyo, fuiste mía.
Tu serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.
Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy....
Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y yo le digo adiós."


Pablo Neruda
(porque me sinto assim tantas e tantas vezes... sim, sinto a tua falta.)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

No quiero ser sin que me mires

"Ahora me dejen tranquilo.
Ahora se acostumbren sin mí.
Yo voy a cerrar los ojos
Y sólo quiero cinco cosas,
cinco raices preferidas.
Una es el amor sin fin.
Lo segundo es ver el otoño.
No puedo ser sin que las hojas vuelen
y vuelvan a la tierra.
Lo tercero es el grave invierno,
la lluvia que amé,
la caricia del fuego en el frío silvestre.
En cuarto lugar el verano redondo
como una sandía.
La quinta cosa son tus ojos,
Matilde mía, bienamada,
no quiero dormir sin tus ojos,
no quiero ser sin que me mires:
yo cambio la primavera por que tú me sigas mirando.
Amigos, eso es cuanto quiero.
Es casi nada y casi todo.
Ahora si quieren se vayan.
He vivido tanto que un día tendrán que olvidarme por fuerza,
borrándome de la pizarra: mi corazón fue interminable.
Pero porque pido silencio
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrario:
sucede que voy a vivirme.
Sucede que soy y que sigo.
No será, pues, sino que adentro de mí crecerán cereales,
primero los granos que rompen la tierra para ver la luz,
pero la madre tierra es oscura:
y dentro de mí soy oscuro:
soy como un pozo en cuyas aguas la noche deja sus estrellas
y sigue sola por el campo.
Se trata de que tanto he vivido que quiero vivir otro tanto.
Nunca me sentí tan sonoro, nunca he tenido tantos besos.
Ahora, como siempre, es temprano.
Vuela la luz con sus abejas.
Déjenme solo con el día.
Pido permiso para nacer.
"

Pablo Neruda
(junto à sua casa em Isla Negra o mar é quase português)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Inalienavelmente alheio


"Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas
Nada contava nem tinha nome
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono."



Pablo Neruda
(porque aqui é primavera e aí é outono e no meu coração está frio)

domingo, 4 de novembro de 2007

E assim tu pão e luz e sombra és...

"É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei,
nem donde vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz e sombra és.
Chegaste à minha vida com o que trazias,
feita de luz e pão e sombra,
eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir o que não lhes direi,
que o leiam aqui e retrocedam hoje
porque é cedo para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor,
uma folha que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura de um amor verdadeiro."

Pablo Neruda
(porque estou aqui e penso em ti...)

sábado, 3 de novembro de 2007


"Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas llenas del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto."


Pablo Neruda
(porque também te amo quando estás em silêncio)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Como é a natureza


"Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza."


Pablo Neruda
(para ti que me perdoas sempre...)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O vento da vida

"Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi:
não soube que ias comigo,
até que as tuas raízes atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo."
Pablo Neruda
(porque a paisagem chilena também é triste)

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tão curto o amor, tão longo o esquecimento

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo. Isso é tudo.
Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.
Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo."


Pablo Neruda
(no dia em que parto para o seu país)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Onde o olhar começa a doer

"Tu estás onde o olhar começa
a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.
Fala-me das cigarras, desse estilo
de areia, os pés descalços,
o grão do ar."
Eugénio de Andrade, in 'Matéria Solar'

domingo, 28 de outubro de 2007

Eu venho do nada porque arrasei o que não quis

"Encosta-te a mim
Encosta-te a mim, nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim, talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim, dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou, deixa-me chegar.
Chegado da guerra, fiz tudo p´ra sobreviver
em nome da terra, no fundo p´ra te merecer
recebe-me bem, não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói, não quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim.
Encosta-te a mim, desatinamos tantas vezes
vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for.
Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada onde só quero ser feliz
enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim. "

Jorge Palma, in 'Voo Nocturno'

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Terror de não haver ninguém

"Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens
Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos."
José Tolentino de Mendonça, in 'A noite abre os meus olhos'

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Frio


Dei por mim sentado no chão do quarto a contar as horas para que a noite caísse. Sabia que a noite nos traria a cumplicidade dos corpos... Era a cama o nosso território. Quando se passou aquele par de horas sem que aparecesses percebi que algo de trágico teria acontecido. Por isso quando o telefone tocou e me disseram que tinhas tido um desastre e estavas em coma, a notícia não causou em mim qualquer surpresa. Senti apenas o arrepio daqueles momentos em que nos apercebemos de que a vida não vai voltar a ser igual.

Cheguei ao hospital passado pouco tempo. A tua mãe já estava sentada na sala de espera, hirta, com uma expressão muito dura no rosto. Deixei-me ficar ao seu lado, em silêncio, sem perceber se devia pegar-lhe na mão e desejando ardentemente que ela me confortasse com umas festas. E ficámos ali os dois, numa tensão surda, as duas pessoas que mais te amavam à espera da confirmação da tua morte ou da tua salvação.

Quando o médico apareceu levantámo-nos os dois em menos de nada. A notícia de que a operação tinha corrido bem não foi sequer festejada porque a informação de que continuavas em coma deixou-nos completamente transidos de terror. Estavas agora num território só teu e apenas tu poderias encontrar o caminho de volta.

Nunca como naqueles dez dias que durou o teu coma eu senti tanto frio. Por mais que me agasalhasse estava constantemente gelado. Era o medo de te perder para sempre que me gelava a alma, o corpo, o coração. Era a certeza de que te amava que me deixava esmagado de desespero. E foram as recordações dos tempos felizes que me fizeram ultrapassar a tua perda. O fim é sempre mais trágico quando não o esperamos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A queda

Em resposta a este post da Laura



O Silêncio. O tal silêncio que deixava todos envergonhados quando se olhavam nos olhos. Sobreviver à tragédia era, no fim de contas, viver a humilhação da derrota. Ao fim de tantos e tantos dias os pesados portões da cidade continuavam abertos. Não havia nada para defender que justificasse a sua urgente reconstrução.
Começaram por limpar as ruas, enterrando os mortos em fundas covas nos limites das grandes muralhas, no sítio mais longe da vista de todos. Em vez de cruzes plantaram uma árvore no lugar de cada morto: pinheiros bravos para os homens e árvores de fruto para as mulheres. Passado este tempo recomeçaram a construção das grandes portas da cidade. Quando as fecharam respiraram de alívio por se saberem separados do resto do mundo. Escondiam a vergonha e a desilusão dos olhares indiscretos de todos os que agora se regozijavam com a queda daquela cidade antes impenetrável. Só depois, pedra a pedra, levantaram as paredes das casas, uma a uma. Sem luxos, sem sedas, sem ouro. Apenas a crueza da pedra e o aveludado da madeira. O regresso às origens. A austeridade humilde dos que precisam da simplicidade para se fortalecerem. O luto durou um tempo indeterminado. Só quando se ouviu o choro da primeira criança nascida depois do ataque, a cidade voltou a respirar de alívio. E nesse dia as árvores no cemitério floriram pela primeira vez. E nas janelas das austeras casas de pedra começaram a aparecer pequenos vasos com rosas de todas as cores. A tristeza dera lugar à esperança. A vida recomeçara. E todo aquele sofrimento deu lugar à certeza de que não voltariam a ser humilhados daquela forma.

sábado, 20 de outubro de 2007

Olhar-te última vez com tristes olhos



Acordei antes de ti, bela Lisboa
Que dormes ainda nos braços do teu Tejo
Amante fiel que a solidão perdoa
Rio alegre que me traz tudo o que vejo.

O Tejo não é rio, já é mar.
É mar que também ama e não esquece
A dor de partir além de ti,
A dor de ficar num espaço breve.

Lisboa que ainda dormes sem saber
Que esta manhã já não acordas a meu lado,
Que este sol que nos invade também separa,
Que este mar que hoje me leva não é salgado.

Lisboa adormecida, minha amante
Que lânguida te abandonas em meus braços
Deixa-me olhar-te última vez com tristes olhos
Que pelo mundo levarão o teu retrato.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Intervalo

"Eu só quero o silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma,
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam."


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Em verdade e transparência

"Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer."


Sophia de Mello Breyner,
in “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”

Amar-te

"1
Uma onda
é amar-te e medo
ciúme deste mar
tan-tan do meu naufrágio
numa canoa de pétala
de acácia
2
Uma jangada
que me tragas feita
de troncos de palmeira
ou de um barco de negreiros
afundado
e dentro de uma concha
uma notícia
3
Amar-te é esta distância
e junto ao mar
senti-lo viajado
azul e com estrondo
4
Amar-te é uma fogueira
sobre a onda
sítio de uma lavra
de milho ou mandioca
na areia que me foge
sob a espuma
5
Amar-te é isto
com o teu perdão
não agarrar a onda
e mastigar-lhe o sal
que apenas sei
ter já beijado
a tua praia
6
Uma onda
que penso.
Outra em que reparo.
A mesma em que pensei
e que retorna ao mar.
7
Porque ficar a onda
— o impossível
(dizem que não havia
mar
remos de sol
nem barcos afundados)."

Manuel Rui, in 'A Onda'

domingo, 14 de outubro de 2007

Na placidez dos lábios

"(...) Mas insensivelmente os lábios foram-se separando um pouco. Um dente. Subtil iluminado de pacificação serenidade alegria de ser - se te demorasses um pouco. E seres aí a vida rodeada de verdade por todos os lados. Um dente visível. Mas os lábios separaram-se um mais e são agora um sorriso claro solar. E instintivamente deixei que se demorasse aí até eu poder reconhecer-lhe o esplendor. É um riso, não vou cometer a imprudência de o perder. Está na linha do céu e do mar, não vou. A juventude sem uma força excessiva de o ser. A confiança - não vou. O futuro dos séculos a quererem vir. A segurança contra o medo a vileza a degradação. A morte. Nem na realidade há nele futuro algum. Porque todos os séculos do futuro e do passado se conglomeram ali no instantâneo presente. O riso. Sem olhos nem face. Nem cabelos. Porque toda a sua ausência está lá. São olhos iluminados de uma festa terrível, cabelos de ar. Fixar-te para sempre, riso da minha pacificação. Mas pouco a pouco houve primeiro um estremecimento aos cantos da boca. Pouco a pouco um encrespado na placidez dos lábios repousados um no outro e depois a boca alargada, vejo-a alargar-se por dentro do meu pavor. E os dentes já visíveis onde o ódio começa, a boca toda aberta, aberta. Rasgada, escancarada até ao limite do seu possível. Os dentes, a língua. E de súbito, entalado na garganta, de súbito um grito horríssono, ouço-o. Tapo os ouvidos, ouço-o. Horror, ódio, desespero. Vem das cavernas do Mundo. Das trevas de todas as noites. Rebenta-me os ouvidos, o crânio. Urro de massacre, a terra treme. Olho a boca selvagem, os dentes carnívoros. A língua. Aguardo que o urro se acabe. E com efeito, subitamente cessou. Mas a imagem imobilizou-se no grito enorme que já não ouve. É o horror inaudível, mas presente assim na imagem fixa. Sem o estridor que a estremecesse. Mais plausível no imaginário de o ouvir.(...)"

Vergílio Ferreira, in 'Na tua face'

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Mais sem fim


"Hoje é o primeiro dia do mês e de ti
dia iluminado pela exactidão solar do teu nascer
dia sem noite e sem confim

dia que te deu o rigor e a regra
o fiel certo da balança humana do olhar
signo da justiça da luz e do ar

dia pleno de ti
dia em que não pesei a solidão
porque nos teus olhos reconheci
ainda sem o ver
o amor mais fundo e mais sem fim"


José Manuel dos Santos , in 'O livro dos registos'

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Um dia de ilusão

"Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
Ou é um grito
Que nasce em qualquer lugar
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou
Às vezes sou
O tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que eu sou"


Maria Guinot

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Mas não quando se ama


"Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferença,
mas não quando se ama,
não quando se aperta contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te."


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Tempo sem recordações

Sento-me e peço un gin tónico. A Pamela atende-me com o sorriso de sempre, aberto, carinhoso, fiel. Percebo no seu olhar a surpresa de me ver pedir uma bebida tão forte quando ainda não é meio-dia. Mas não diz nada. Baixa os olhos, como eu os baixo por sentir que a minha angústia está espelhada no meu rosto.

À minha volta há demasiada gente, demasiada luz. Há barulho de crianças a correr pela praça e há conversas cruzadas. Todos parecem ter algo a dizer. Eu não converso com ninguém. Não tenho com quem conversar. Ninguém sabe quem sou, de onde venho e porque estou ali sentado, a beber um gin tónico quando ainda não é meio-dia. Nunca ouviram falar de ti nem da demência que a tua ausência quase me causou. Ninguém sabe que desde que partiste eu não vivi, eu sobrevivi apenas. Ninguém faz ideia de como me perturbam e me irritam as gentes, a luz em demasia, as crianças a correr pela praça, as conversas cruzadas. Ninguém imagina como queria ter para onde ir, como queria ir para qualquer lugar, deixar para trás as recordações de um tempo sem recordações e aceitar que tudo vai ser diferente daqui para a frente...

Na rádio toca "Los Panchos". Associo-te a esta música. É quente... e apesar de estarmos em Agosto e de os termómetros marcarem mais de 30 graus, morro de frio ao pensar na tua ausência...

Lento desejo do teu corpo

"(...) E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo."
Herberto Helder, in 'O Amor em visita'

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Dia Mundial da Música


"Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar
Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando há traição, ciúme e morte
E um coração a bater forte
Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
No dia de procissão
Da Senhora da Saúde
Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama
Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:
Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar
Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca, mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, folião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele
E então
E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Ah! Corre em vertigem num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua
Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar
E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir
Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado."

domingo, 30 de setembro de 2007

Maldição


"Que destino ou maldição
Manda em nós, meu coração,
Um do outro assim perdidos?
Somos dois gritos calados,
Dois fados desencontrados,
Dois amantes desunidos.
Por ti sofro e vou morrendo.
Não te encontro, não te entendo,
Amo e odeio sem razão.
Coração quando te cansas
Das nossas mortas esperanças
Quando páras coração?
Nesta luta, nesta agonia
Canto e choro todo dia
Sou feliz e desgraçada.
Que sina tua meu peito
Que nunca estás satisfeito
Que dás tudo e não tens nada.
Ó gelada solidão
Que tu me dás coração
Não é vida nem é morte.
É lucidez, desatino
De ler no próprio destino
Sem poder mudar-lhe a sorte..."

(Alfredo Duarte e Armando V. Pinto)

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Fantástica vinda

"Espero sempre por ti o dia inteiro
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda"
Sophia de Mellho Breyner Andresen, in 'Mar'

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Chamo-Te

"Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado."

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Tempo distante


"Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaçoe o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram."


Herberto Helder, in 'Poesia Toda'

domingo, 23 de setembro de 2007

Toi que j'attendais même en ta présence

"Et tois, Hongrois, mon Arpad, plus exilé encore que moi, tellement présent, tellement absent, avec une langue qui semblait plus étrangère encore que la mienne aux camarades de terrasses et d'expositions, dans la ville du petit fleuve si différent non seulement de ton Danube mais de mon Tage, avec ta séculaire tradition d'errances, de déménagements interminables, maître du provisoire et transitoire, que je cherchais toujours sans pouvoir découvrir qu'un fragment, Arpad, mon Osiris, qui me trouvais toujours guidant ma main sans y toucher, toi, mon oeil supplémentaire établissant des dimensions nouvelles par ta façon de regarder ce que je te proposais, toi que j'attendais même en ta présence, Arpad, mon Ulysse, que j'imaginais combattant sous les murs de cités orgueilleuses, puis avec de cyclopes et des sorcières, quand tu t'es éloigné définitivement, il n'y a pas eu de rupture das ton silence ni dans les miens. Soudain seulement j'ai senti la vieillesse dont tu m'avais préservé, car je m'imaginais qu'elle était ta prérogative, siffler comme le vent des chevauchées de tes ancêtres depuis l'Asie à la découverte de nouvelles prairies aux climats moins rudes, comme celui des pérégrinations des miens à la découverte de nouvelles rivages aux civilisations surprenantes."
.
Maria Helena Vieira da Silva em carta a Arpad Szenes
(excerto retirado do texto de Michel Butor do catálogo da exposição 'Vieira da Silva - Oeuvres de la Fondation Arpad Szenes - Vieira da Silva et du Centre d'Art Moderne José de Azeredo Perdigão' no Centre Culturel Calouste Gulbenkian em Paris até 18 de Outubro e em Lisboa a partir de 25 de Outubro)

sábado, 22 de setembro de 2007

"Sim mãezinha?"


Saiu de casa com a certeza de que não voltaria. Não sabia bem se era o último dia da sua vida ou se era exactamente o primeiro de todo o resto. Sentia apenas que o fim de uma época tinha chegado e que a sua existência iria mudar radicalmente daí para a frente.
Tinha 23 anos protegidos pela asfixiante presença da mãe que se recusava continuamente a perceber que o seu filho tinha crescido. Continuava a ir esperá-lo ao emprego, como tinha esperado o toque de saída no infantário, na escola primária, de sucessivas em sucessivas humilhações até à universidade.

O pai tinha saído de casa poucos anos depois dele ter nascido e esta sombra marcaria para sempre a sua relação com a mãe, uma mulher obcecada com a ideia do abandono. As razões da fuga do seu pai eram para si um mistério. Quando se tocava no assunto, nas raras vezes em que tinha conseguido romper a barreira de silêncio, todos baixavam os olhos com vergonha, ou com receio. A mãe tinha criado uma lenda à volta deste desaparecimento. Dizia a todos que o seu marido tinha sido mais uma vítima da ditadura, sem perceber que as datas não eram sequer coincidentes, ou se calhar compreendendo bem a mentira em que se enredara para poder continuar a viver. Talvez se recusasse a aceitar que o único homem com quem se deitara tinha saído de casa por sua causa, por causa do seu comportamento asfixiante. O filho pensava nas hipóteses: o pai tinha ido embora depois de perceber que a mulher com quem tinha casado não lhe despertava o melhor que tinha dentro de si. Ou porque a sua vida comportava limites mais vastos do que aquele triste quotidiano lhe estabelecia.

Nuno ia já ao fundo da rua (chamava-se Nuno este filho) quando se apercebeu que não sabia o que iria fazer, para onde iria ou o que queria para si. Era domingo e tirando um ou outro transeunte distraído, as ruas estavam praticamente desertas na sua melancólica calma de fim de semana. Caminhava vagarosamente, sentindo a cada passo o peso de uma decisão que iria decerto acabar com a felicidade artificial que a sua mãe tinha criado para os dois.

Enquanto se afastava de casa pensava, orgulhoso, como tinha sido fácil a sua fuga. "Vou comprar pão", disse, sabendo que se lhe faltasse a coragem poderia sempre regressar com um saco de carcaças da Padaria Mimosa que era mesmo ali na esquina. Não acreditava que fosse capaz de ultrapassar essa fronteira.

Quando passou à porta da padaria o seu coração batia a um ritmo descontrolado. Por momentos achou que algo ia explodir no seu peito, que iria ter um colapso e ficar estendido ali mesmo. Parou um pouco e encostou-se à parede, branco, ofegante e a insultar-se pela sua fraqueza. Resolveu entrar e comprar o pão, saindo a correr sem sequer levar o troco o que suscitou a desconfiança da mulher do padeiro que nunca tinha visto aquelas atitudes numa pessoa que sempre lhe parecera calma. Se lhe pedissem para descrever o Nuno diria que era uma daquelas pessoas que fica à espera que o mundo gire para dar um passo. "Uma mosca-morta!"

Entrou em casa batendo com a porta e depois de atirar o pão para a mesa da cozinha trancou-se no quarto com lágrimas de raiva nos olhos, saboreando a sensação de liberdade que lhe percorrera o corpo quando decidira fugir. Mas falhara. Uma vez mais falhara. E quando a mãe lhe bateu à porta para saber o que se passava recompos-se respondendo a frase de sempre: "sim mãezinha?"

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Que a noite fosse eterna

"Hoje estou quase bêbado de tristeza. Profundamente só, vou-me perdendo na noite. Estou vencido e massacrado, como não calculas. Desejaria que a noite fosse eterna , que o céu sorrisse pela boca das estrelas, (...). Seria pedir de mais, eu sei. O meu destino de homem, talvez de pária, não deve comportar desejos etéreos. Assim, resta-me converter a dor ao credo das palavras. É, de facto, demasiado doloroso não ter um pedaço de manhã guardado para uma alegria, é mesmo quase humilhante de tão cruel. Mas parece que convém continuar. Ou pelo menos fingir que a angústia não é connosco. «Tudo, menos a piedade...» (diria o Álvaro de Campos). E diria certo. Mas, às vezes, o coração contorce-se e é necessário sangrar. Como hoje, dia igual a tantos outros que já nem sei bem se chegaram a passar. Ia dizer avante! e encontrei-me a sorrir. Acontece-me sempre isto, quando tento projectar-me num espaço ou num tempo. Qualquer dia de tão irreal, talvez acorde homem. Talvez me cresçam certezas na boca... (...)."

José Bação Leal, in 'Poesias e Cartas'

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Gelada solidão

"Que destino, ou maldição
Manda em nós, meu coração?
Um do outro assim perdido,
Somos dois gritos calados,
Dois fados desencontrados,
Dois amantes desunidos.
Por ti sofro e vou morrendo,
Não te encontro, nem te entendo,
A mim o digo sem razão:
Coração... quando te cansas
Das nossas mortas esperanças,
Quando páras, coração?
Nesta luta, esta agonia,
Canto e choro de alegria,
Sou feliz e desgraçada.
Que sina a tua, meu peito,
Que nunca estás satisfeito,
Que dás tudo... e não tens nada.
Na gelada solidão,
Que tu me dás coração,
Não é vida nem é morte:
É lucidez, desatino,
De ler no próprio destino
Sem poder mudar-lhe a sorte."

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Debaixo da chuva

Neste momento o céu abate-se sobre Lisboa. Deixei mesmo de ver o rio tal é a intensidade da água que cai. Há trovões e raios a rasgar o céu. Se isto fosse um filme era agora que eu saía a correr atrás de ti e te puxava por um braço para te dar um beijo debaixo da chuva. Se isto fosse um filme tu não ias perceber que eram lágrimas que me escorriam pela face. Se fosse um filme estaríamos os dois encharcados e o teu olhar explicar-me-ia que desta vez partias para sempre. Se fosse um filme eu dava-te um último abraço para sentir o teu corpo debaixo da roupa molhada. Se fosse um filme tu afastavas-me em silêncio. Era o fim da tal promessa de um verão prematuro...